Uma antiga lenda indígena relata como se deu o surgimento da vida.
No início, havia apenas trevas e do interior do nada, Tupã fez germinar a
luz. No negro céu, em meio a um infindável vazio, o poderoso senhor dos trovões
criou o sol, fonte incandescente de luminosidade, a lua e as estrelas com seu
brilho ameno.
Durante o dia, sob a égide do deus Guaraci, a vida pulsaria fulgurante,
multicolorida. À noite, envoltos no manto da escuridão e da quietude, os seres
viventes se recolheriam, repousariam e recuperariam suas forças, acolhidos pela
terna proteção da deusa Jacy.
Curupira e Caipora foram designados guardiões das matas e dos animais. À
divina Yara, coube a missão de reger os mares, lagos, rios, pororocas,
piracemas, igapós e igarapés, através dos quais a sabedoria perene das águas
espalharia o sêmen da vida ao longo do Solimões para além das terras de Marajó.
Rupave e Sypave, respectivamente o pai e a mãe de todos os humanos foram
moldados no barro. Um sopro divino conferiu-lhes o dom da anima. E puderam assim gerar homens e mulheres que se
multiplicariam pelos vales e colinas.
Advertiu-lhes com severidade o sábio criador:
“Deixo-vos este Eldorado para ser vossa morada, para que possais nele
criar vossa prole com fartura. Que a terra fértil possa abastecer de tudo o que
vossas necessidades rogarem.
Os frutos da terra nutrirão a todos e dela emergirá o maná abençoado em
profusão para os vossos filhos e para os filhos dos vossos filhos. As águas
puras, frescas e cristalinas a brotar magicamente das pedras aplacarão
prazerosamente vossa sede. As árvores exalarão bálsamos revigorantes e vos guarnecerão
proteção contra os efeitos abrasivos do sol e um ninho acolhedor quando
precisardes descansar vossos corpos. O fogo propiciará aquecimento para
enfrentardes o frio e tornará palatáveis os alimentos.
Essas oferendas a vós concedidas farão das terras um éden para usufruirdes
de uma existência plena e radiante, ainda que efêmera. Confio que usareis sabiamente
as dádivas para fazerdes jus à felicidade que elas vos proporcionarão.
Tais bênçãos, todavia, não são privilégio de seres como vós, mas proverão
as necessidades das demais formas de vida com quem convivereis, animais e plantas
que convosco partilharão o espaço: borboletas, besouros, araras, andorinhas,
arapongas, periquitos, tucanos, tamanduás, jaguatiricas, macacos, antas,
capivaras, sucuris, sapos, jacarés, pirarucus, tucunarés, tambaquis, pacus,
açaís, buritis, cupuaçus, ingás, jacarandás, ipês, cedros, jatobás...”
E assim os primeiros homens e mulheres, deslumbrados com a abundância de
cores e formas que o generoso deus lhes havia oferecido, sentiram-se gratos
pela bem-aventurança de que foram beneficiários e preservaram com zelo o que
lhes cercava.
Essa harmonia entre entes tão distintos não chegou a ser gravemente
abalada quando advieram aos humanos sentimentos de cobiça e rivalidade que colocaram
irmão contra irmão e puseram em pé de guerra as tribos, surgindo os primeiros embates,
sob o olhar reprovador de Tupã.
Ainda assim, o misericordioso relevou tais transgressões e entendeu que
os seres, imperfeitos e mortais que eram, não chegariam mesmo a um
congraçamento universal como seria de seu agrado. E a vida manteve seu tênue
equilíbrio por muitas e muitas luas.
A situação não perdurou quando jovens guerreiros, tomados pela ambição,
fizeram aliança com os espíritos malignos que sempre estiveram rondando, esperando
a oportunidade para infundir a discórdia.
Abdicando da coexistência pacífica, prepararam-se para a guerra em busca de
maior poder. Para ampliar seu domínio, subjugaram as espécies mais dóceis e
eliminaram diversas formas de plantas e animais, empobrecendo a diversidade.
O boto rosa não mais foi avistado. A harpia alçou as asas em direção ao
infinito. E o canto de Uirapuru nunca mais pôde ser ouvido.
Ervas utilizadas secularmente pelos xamãs em seus preparos foram extirpadas.
Foram abolidos os rituais de pajelança e desdenhada a sabedoria milenar dos
ancestrais. Sem os elixires, os males e as pragas divinas se espraiaram.
Rompido o equilíbrio, os mares ficaram revoltos, os ventos cada vez mais
furiosos, a aridez da terra alastrou-se, a vida fragilizou-se.
Com seu uso desvirtuado, o fogo transformou-se em arma de extermínio e a
fumaça cobriu a luz do sol e o brilho das estrelas. O ar e a água foram
envenenados. O vívido azul dos mares e o cintilante verde das matas tornaram-se
cinzentos e opacos.
Tupã assistiu tristonho o ocaso da vida que fizera brotar ao longo de
rios, campos e montanhas. A obra da sagrada divindade fora corrompida pela
ganância. As ruínas do seu reino foram apropriadas por Anhangá, o deus da morte
que assumiu o comando.
Conta-se que o criador ao ver sua obra desfeita pela criatura, não a
castigou nem reagiu. Deixou o inexorável destino cumprir sua sina, sem impedir
que as ações insanas dos humanos sobre eles próprios revertessem seus nefastos efeitos,
provocando sua auto-destruição.
Tupã se recolheu. Diz-se que se transmutou em espírito protetor de uma
floresta distante, fora do alcance da insensatez. Sua voz grave porém ressurge
retumbante e assustadora no ribombar dos trovões, quando as tempestades, cada
dia mais fortes e avassaladoras, desabam sua fúria sobre os herdeiros da terra
devastada.
3 comentários:
Divino e humano . Delicioso texto .
Boa tarde Sergio. Se vc permitir uso essa lenda no meu trabalho sobre HISTÓRIA DE SÃO PAULO EM IMAGENS em que começo falando dos nossos primeiros habitantes, os indígenas. Acompanho seus posts e tenho o seu livro também. Leio aos poucos porque tenho uma pilha de livros me assediando para serem lidos.
Muito muito bom! Parabéns! Versos bem alusivos a situação atual. Trágico e cômico!
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