quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

TERRAPLANISMO JURÍDICO


 Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu. (Roda-Viva, autoria presumida: Chico Buarque)

 

Chico Buarque, que ingressou com uma ação judicial contra o deputado Eduardo Bolsonaro por uso em campanha eleitoral da canção Roda Viva, sem autorização, viu seu pleito negado por uma juíza, sob alegação de que não há provas de que a música seja efetivamente de Chico. Extraio desse evento três deduções.

A primeira é a comprovação de que, inobstante a controversa decisão judicial, a obra de Chico permanece atemporal e unanimemente reconhecida. Ainda que tenha afinidades com a esquerda, o compositor carioca é reverenciado por gente de todos os matizes ideológicos, inclusive o filho 03 do presidente, representante máximo da extrema direita, que não vacilou em usar uma composição de seu desafeto político em sua propaganda eleitoral. Décadas de dedicação à música, ao teatro e à literatura tornaram Chico um patrimônio da cultura nacional, idolatrado por todos os brasileiros. Pelo menos os que o conhecem.

Essa última frase nos remete à segunda e desalentadora dedução de que a imbecilidade geral que vigora no país atingiu até respeitáveis integrantes do poder judiciário. Tomo como base tal suposição para não fazer mau juízo da juíza. Explico. Confio em sua boa intenção em julgar com base estritamente no (limitado) arcabouço jurídico de que é detentora, não tendo sido sua sentença influenciada por torpes motivações ideológicas que pudessem macular a lisura de suas apreciações. Em outras palavras, prefiro considerá-la tapada do que desonesta.

Por mais bolsonarista que pudesse ser a togada, não creio que, em nome de suas preferências políticas, expusesse-se à execração pública, humilhada por ser conhecida como “aquela juíza que não sabia que Roda Viva era do Chico Buarque”.

Quero crer que, agindo de boa-fé, tenha sido ela movida exclusivamente pelo empenho em portar-se com máximo rigor jurídico, obrigando as partes litigantes a juntar todos os elementos materiais cabíveis para que pudesse proferir uma sentença fundamentada nos cânones da ciência forense que, no caso, exigiam a completa instrução nos atos do processo com as necessárias provas documentais. Afinal, a regra processual impõe que se apresente, com a petição inicial, os documentos indispensáveis à propositura da ação.  O objetivo final é que seu julgamento entrasse para os anais da jurisprudência por sua excelência, nunca para ser objeto de achincalhe, uma sentença risível a figurar nos compêndios das decisões esdrúxulas do Direito.

A terceira e última dedução, a meu ver, a mais preocupante, é um alerta para os precedentes perigosos a que estamos adentrando para fundamentar a decisão da honrada magistrada analfabeta. Ora, supondo-se que a segunda dedução seja verdadeira, subentende-se que a juizeca (com perdão da expressão), por mais absurdo que possa parecer, de fato ignore quem compôs essa desconhecida melodia intitulada Roda Viva. Não seria de se estranhar que a meritíssima tivesse como referências musicais algo mais próximo a Gusttavo Lima. Talvez a magistrada, mesmo contando com algo em torno de 40 anos de idade, boa parte dedicados à formação em assuntos didáticos e cultura geral, desconheça a existência de um Chico Buarque.

Assim fosse, não custava nada à nobre e desinformada mediadora, com vistas a simplificar os trâmites dos autos e evitar desnecessárias delongas que afligem os milhões de processos que atolam o Judiciário, resolver em minutos a questão, acessando no Google alguns dos milhares de sites de renomados jornais, revistas especializadas, teses de mestrado em PDF, Wikipedia, Catálogo da IMMUB etc. Não faltam na rede mundial fontes fidedignas de consulta que reportam Roda Viva como uma das antológicas canções da era dos festivais, um marco importante na história do país. Tão prestigiosa que inspirou até o famosíssimo programa homônimo de entrevistas da TV Cultura. Sem falar nos vídeos no Youtube, com inúmeras versões da canção, citando sua autoria. Em poucos minutos, teria em mãos farto material probatório atestando irrefutavelmente a paternidade da referida canção.

Com isso, bastaria aplicar a norma (que descobri ao xeretar) de que fatos públicos e notórios prescindem de provas documentais (artigo 374 do Código de Processo Civil). Caso aplicasse dispositivo básico, teria resolvido a questão sem perda de tempo. Esse simples ato de bom senso pouparia a um dos maiores artistas do país passar pela situação kafkiana de brigar na justiça para provar que sua filha é filha sua.

Mas não! A juíza estava empenhada com esse imbróglio em criar um marco contencioso que a retirasse da mediocridade. Certamente o pioneirismo de sua decisão criaria jurisprudência estabelecendo que, a partir de agora, todas as afirmações dos demandantes, por mais óbvias que possam parecer, devem vir acompanhadas de fundamentação protocolar, ou seja, comprovadas com documento emitido por quem de direito, com firma reconhecida para demonstrar formalmente que tomate não é caqui.

Roda Viva é de Chico? Prove!! Chico Buarque existe mesmo ou é um robô? Quem pode afirmar que Garota de Ipanema é de Tom e Vinícius? A Quinta Sinfonia de Beethoven é mesmo de Beethoven? E os afrescos da Capela Sistina são de Michelangelo? Quem disse? O papa? E a Teoria de Relatividade é desse tal de Einstein? É relativo... Cadê o papel passado em cartório? A Terra é redonda? Nada indica que seja a não ser a imprensa mentirosa. Quem disse que a Terra gira em torno do Sol? Na Bíblia não consta tal registro. Não podemos nos guiar pelo ‘achismo’.

Estamos imersos na ‘cultura do WhatsApp’, em que as circunstâncias alardeadas pela imprensa (“nas mãos de esquerdistas”) e o conhecimento científico (“apropriado pelo globalismo marxista”) valem menos do que a palavra da comadre do culto. Estamos chegando a um novo estágio no campo do saber em que, num mundo dominado por fake news, não existem fatos, apenas interpretações.

Por isso, a afirmação “Roda Viva é de Chico” está eivada de inaceitáveis juízos de valor que nada valem num tribunal. Diziam enganosamente que o nazismo é de direita. Mentira! Ancorado na sabedoria legitimada por suas longas barbas negras (que até que se prove o contrário não eram postiças), o eminente Professor Enéas já comprovou que nazismo é de esquerda. As vacinas previnem as doenças? Quem disse? Se o pastor afirma que o correto é deixar a cura nas mãos de Deus.

Sim, estamos vivendo uma época de quebra de paradigmas. Quando, amigo leitor, deparar-vos com informações falsas tais como “Roda Viva é de Chico”, duvidai. Nos tempos de pós-verdade, não há mais certezas e todos os insuspeitos estão sob suspeição.

 

 

 

domingo, 20 de novembro de 2022

MANÉS DO FUTEBOL

 

Gilmar, Djalma Santos, Nilton Santos, Didi, Vavá, Zagallo, Garrincha, Pelé eram nomes que todo o brasileiro carregava na ponta da língua. As massas veneravam esses craques da seleção vencedora do campeonato mundial de futebol de 1958, pessoas simples, que deram o sangue para trazer da Suécia o inédito título. Além do amor à camisa, sabiam eles como domar a bola, dom adquirido em peladas de rua e campos de várzea. Eram gente humilde e sofrida do povo que ralava para conseguir sobreviver com os magros rendimentos que recebiam, num país sem hábito de valorizar profissionais do esporte.

Garrincha, o maior jogador brasileiro de todos os tempos após Pelé, era a própria imagem desse esportista autodidata  que, com seus dribles desconcertantes, deixava os gringos atordoados no chão. O Mané franzino de pernas tortas, que proporcionou tanta alegria e deu tanta fama ao nosso futebol, morreu esquecido da mesma forma como nasceu: na miséria.

Uma década depois, a seleção de 1970, a melhor de todos os tempos, também nos encheu de brio, quando conquistou invicta o tricampeonato no México. O mundo se curvara definitivamente ante nosso futebol-arte, recompensado com a posse permanente da taça Jules Rimet.

À época, o país atravessava um período nefasto, sob ditadura militar. Por essa razão, alguns ensaiavam torcer contra pois temiam que a conquista do torneio pudesse ser usada para intensificar a repressão. Mas, no fim, a magia futebolística dobrou as divergências políticas e todos os brasileiros deram-se as mãos e renderam-se ao feitiço da linha de frente composta por Gérson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé. O verde-amarelo espalhou-se pelas ruas, atropelou os sectarismos e impôs-se não como êxito do regime mas como símbolo de uma nação orgulhosa de seu futebol.

Nos 50 anos que se seguiram, muita água rolou, o futebol passou por mudanças inimagináveis, o ‘mercado da bola’ globalizou-se e passou a determinar, sob novas bases, os destinos do esporte, envolvendo poderosas marcas de empresas e movimentando quantias astronômicas. Os jogadores mais exímios passaram a ser cobiçados por equipes europeias capitalizadas que, sob o patrocínio de anunciantes bilionários, contrataram os talentos emergentes a peso de ouro.

O que Garrincha ganhava em dez anos defendendo o Botafogo não chega ao que Neymar passou a receber por dia de salário no PSG sem contar o que fatura ‘por fora’ com a venda de sua imagem, luvas etc. O garoto-prodígio, provindo da categoria de base do Santos, viu transformar seu talento inato numa máquina de produzir dólares, sem que lhe fosse dado suporte emocional para lidar com essa mudança radical de estilo de vida.

A subordinação do futebol a esse esquema mercantil, retirou também muito do encantamento que o esporte proporcionava.

O elenco atual da seleção formado, em sua maioria, por nomes pouco familiares da população, atuando por times estrangeiros, não provoca a empatia de outrora. As pessoas que desfilam pelas ruas de verde-amarelo não sabem os nomes dos escolhidos por Tite no futebol europeu mas sabem os dos integrantes do ‘time’ dos ministros do STF.

Ignorados em sua própria pátria, os astros futebolísticos não têm, todavia, do que se queixar. Em pouco tempo amealharam uma fortuna pessoal inacreditável. Ao contrário dos guerreiros de 1958 e 1970, os atuais membros da seleção pertencem ao clubinho fechado dos ‘novos ricos’ que embolsaram uma quantidade de dinheiro tão absurda que nem imaginam o que fazer com ela.

Encantados pelo novo status social a que foram repentinamente alçados, renegam as condições humildes de onde provieram que fazem questão de apagar da memória. Desprezam os pobres que lhes remetem ao passado de privações do qual querem distância.

À exceção de nomes como Sócrates ou Casagrande, remanescentes da “democracia corinthiana”, as estrelas ascendentes do futebol não têm qualquer consciência social, não se posicionam contra o racismo e não estão nem aí contra as desigualdades e a miséria.

Não têm também o menor interesse em utilizar a riqueza que o destino lhes agraciou para adquirir maior cultura, educação artística, literária, intelectual ou investir em desenvolvimento pessoal. Preferem torrar todo dinheiro em bens de luxo, baladas e programas com loiras piriguetes. E ainda ganham o direito de torturar nossos ouvidos com seu mau gosto musical escolhendo canção no Fantástico.

Não são poucos os que se envolveram em delitos como estupro, agressão a mulheres, dirigir embriagados, envolvimento com atividades ilícitas e sonegação do imposto de renda.

Não cogitam destinar uma parcelinha de suas fortunas e de seu prestígio para melhorar as condições de esportistas novatos de seu país natal ou ajudar a proporcionar chances de ascensão a tantos manés que, por falta de oportunidade, descambaram para o lado do crime e das drogas.

Apesar dessa conduta amoral, declaram-se, em sua maior parte, evangélicos. Nesse credo, idolatram um deus que propicia um paraíso de luxúria mas se nega a promover a solidariedade, a compaixão e dá as costas aos despossuídos.

Para o imenso contingente de pequenos manés que rondam pelas quebradas, presa fácil do crack e do crime organizado, na falta de quem os ampare, a esperança que resta é que sejam abençoados com talento futebolístico. Não o de um Garrincha batalhador e ídolo das massas, mas o de um Neymar simulador, egocêntrico e podre de rico.

 

 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

ROQUEIRO REAÇA

 

“O Rock Errou” (Lobão)

O sinal de alerta acendeu quando Roger Waters, em sua apresentação de 2018 em São Paulo e Curitiba, ao projetar no telão atrás do palco os dizeres “ELE NÃO”, em protesto contra o então candidato a presidente Bolsonaro, recebeu vaias por parte da plateia. Os pretensos fãs do Pink Floyd que hostilizaram o antigo membro do grupo devem desconhecer sua postura antifascista e o teor crítico imprimido em álbuns como em ‘The Wall’ (contra o ensino opressor) ou ‘Animals’ (inspirado na obra ‘A Revolução dos Bichos’ de George Orwell).

Lamentável que pessoas que se autointitulam roqueiros tomem as dores de um governante que viria a ser responsável pelo maior desmonte artístico e cultural que esse país já assistiu? O mesmo que escolheria para comandar a Funarte um sujeito que acusava o rock de ser fruto do ‘marxismo cultural’, ativar o satanismo, induzir ao aborto e promover a destruição da família.

‘Roqueiro bolsonarista’ é uma contradição em si já que não pode haver compatibilidade entre um gênero musical intrinsecamente libertário e arrojado e um político autoritário e obscurantista.

Apesar dessa contradição, o flerte entre rock e conservadorismo é antigo. O próprio ‘rei do rock’, Elvis Presley que, no início de carreira, inspirou-se em artistas negros marginalizados e escandalizou os puritanos com seus trejeitos sensuais (vide filme ‘Elvis’), nunca escondeu suas simpatias pelo nefasto presidente Nixon, o promotor da guerra do Vietnam e do escândalo de Watergate.

Depois de atingir o auge e conquistar a juventude nos anos 60 a 80, esse movimento musical perdeu sua veia transgressora, tornando-se um estilo apreciado majoritariamente por tiozões caretas e saudosistas. Gente que não aceita inovações e curte sempre os mesmos temas de cinquenta anos atrás.

A dolorosa verdade é que o rock, originalmente recheado de artistas negros como Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino, Bo Didley e Jimi Hendrix, converteu-se para muitos num ritmo machista reverenciado por branquelos cervejeiros cultuadores de motos e esportes violentos.

Vários dos grupos de rock que emergem destacam-se mais pelo volume em decibéis que exalam suas guitarras do que pela qualidade musical e pela criatividade. As letras que antes afrontavam a hipocrisia do sistema, passaram a tratar de temas bíblicos, medievais, demoníacos e politicamente incorretos.

Hoje, não são poucos os apreciadores de rock que traíram o espírito rebelde que originou o gênero e passaram a se identificar com o conservadorismo político. Com isso, o rock perdeu seu vigor contestatório, que foi apropriado pelo rap surgido nas periferias, mais consciente das injustiças sociais.

Ex-roqueiros como Roger do Ultraje a Rigor, Digão dos Raimundos e Marcelo Nova do Camisa de Vênus, que se consagraram como porta-vozes do revigorado rock oitentista, agora assumiram abertamente um discurso bolsonarista. Lobão e Dinho Ouro Preto (Capital Inicial) também caíram na esparrela mas perceberam as inconsistências de suas opções, fizeram mea culpa e retomaram o lado certo.

No exterior, a onda conservadora fez ainda maiores estragos. Nomes como Ted Nugent, Kid Rock, Meat Loaf, Phil Anselmo (Pantera), Gene Simmons e Ace Frehley (ambos do Kiss) apoiaram o morfético ex-presidente Trump. Outros que têm posições semelhantes são Joe Perry (Aerosmith) e Dave Mustaine (Megadeth).

Morrissey, ex-líder dos Smiths, um dos próceres da renovação e da sofisticação do rock dos anos 80, ativista e vegano, tornou-se um propagador de ideias supremacistas e xenófobas. Phil Collins, conhecido por sucatear o histórico Genesis, sempre externou posições conservadoras e elitistas.

Até mesmo grupos de punk rock revelaram que sua conduta radical não passava de verniz. Johnny Rotten, ex-líder dos Sex Pistols, que pregava a anarquia e a destruição do capitalismo, foi flagrado com uma camiseta de apoio a Trump. Johnny Ramone dos Ramones, um dos grupos pioneiros do estilo, assumiu que por trás do fictício rebelde escondia-se um patriota eleitor do Partido Republicano.

Para mim, a dissensão mais sentida foi a de Eric Clapton. O deus da guitarra que se consagrou como artífice do blues, ritmo provindo dos negros explorados, cuspiu no prato que comeu e passou a fazer declarações racistas e negacionistas.

Como lídimo apreciador do rock’n’roll, envergonho-me da atitude deplorável desses roqueiros de araque. O rock é essencialmente revolucionário. Desde seu surgimento, representou uma ruptura nos padrões musicais e estéticos. Nada tem de conservador. Foi a trilha sonora que acompanhou as grandes mudanças sócio-políticas do século XX, a contracultura, o movimento hippie e promoveu festivais como o de Woodstock que embalaram o sonho de oferecer um mundo melhor para as futuras gerações

Bob Dylan, John Lennon, Stevie Wonder, Peter Gabriel, Paul Simon, Sting, The Clash, Jello Biafra (Dead Kennedys), MC-5, Bad Religion, Napalm Death, Bruce Springsteen, U2, Talking Heads, Rage Against the Machine, Green Day, Eddie Vedder (Pearl Jam), Serj Tankian (System of a Down), Living Colour, Manu Chao, Radiohead, Gang of Four (para ficar só nos mais engajados) são alguns dos nomes que eternamente farão jus a serem autênticos representantes do rock.

No Brasil, Raul Seixas, Os Mutantes, Secos e Molhados, Novos Baianos, Legião Urbana, Titãs, Paralamas, Barão Vermelho, Cazuza, RPM, Ratos do Porão, Ira!, Plebe Rude, Chico Science, O Rappa, Marcelo D2, Gabriel o Pensador, Otto, DJ Dolores, Mestre Ambrósio, Fernanda Abreu, Lulu Santos, Karnak, Mundo Livre S/A, Cordel do Fogo Encantado, Sepultura, Cólera, Os Inocentes, Detonautas, Pitty, Fresno mantiveram sua dignidade jamais se corrompendo ou se rendendo ao sistema.

Os reaças do rock brazuca têm como companhia artistas como Gusttavo Lima, Amado Batista, Latino e Netinho. Que melancólico fim!

 

 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

DAY AFTER

 

“A bruma leve das paixões que vêm de dentro, tu vens chegando pra brincar no meu quintal” (ANUNCIAÇÃO, Alceu Valença)


O dia amanheceu hoje com uma estranha leveza no ar. O céu dessa segunda-feira cinzenta confrontava minha sensação interior de que se tratava de um folgado domingo, acariciado por discretos raios de um sol outonal. As ameaçadoras nuvens escuras que vinham cobrindo nossa terra nos últimos anos ausentaram-se nesse dia delicadamente nublado.

O rádio insistia em reverberar notícias sobre estradas bloqueadas, resquícios de um passado que resiste em resignar-se ao presente.

O clima de alívio refletia-se no semblante sereno das pessoas que se assenhoreavam das ruas. Nem pareciam as mesmas que já portaram carrancas iradas e temerosas.

O onipresente verde-amarelo começou a desbotar-se ante a perspectiva de um amanhã onde todas as tonalidades poderão dar sua contribuição para um futuro multicolorido em que o arco-íris da diversidade possa reluzir.

As palavras de ordem e as ameaçadoras cantilenas religiosas parecem agora apenas longínquos ecos de tempos intolerantes onde o vizinho era o inimigo em potencial.  Onde, de tanto fazer ressoar palavras de guerra e ódio, abafamos nossa vocação para a paz e o amor. Que voltemos a falar de alegria, esperança e união e retomemos nossas amizades, apartadas pelo clima de divisionismo que se instalou.

Cansei de, em cada canto, ficar à espreita de perigosos bandidos, esquerdistas, viciados e depravados sexuais. Cansei de ver manifestações promovidas por respeitáveis senhoras brancas e alinhados rapazes armados, conclamando contra instituições. Hoje vi gente pobre, preta, esquálida, desmilinguida sorrir de esperança com seus dentes podres. Era o povo abandonado e marginalizado que voltava a protagonizar o enredo do drama de um país tão desigual e injusto para que a trama ganhe um final feliz.

 

 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

O APAGÃO MENTAL DO SR. X

“Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude, tá em casa guardado por Deus, contando o vil metal” (Belchior)

Esse texto trata das peculiaridades de uma figura de presença marcante na cena contemporânea a que designarei ‘sr. X’. Por extensão, inclui também seu equivalente feminino, a ‘sra. X’, à qual pedimos escusas por não nos referirmos a ela explicitamente.

O sr. X pertence a uma geração a que se convencionou chamar de ‘baby boomer’. Nascido não muito após o fim da Grande Guerra, incorporou a mudança radical de costumes ocorrida nos anos 60, com o afloramento do movimento hippie, do rock, da cultura libertária e contestatória. Clamava por justiça e cultivava paz e amor. O sr. X, à época apenas o ‘bicho grilo’ X, prometia abalar os alicerces de uma sociedade corrompida e enterrar a hipocrisia de uma geração que promoveu guerras e holocausto nuclear, e um modo de vida consumista e racista que explorava os povos originários e depredava a natureza.

Inspirada no modelo americano e europeu, a versão tupiniquim do sr. X ficou circunscrita às classes média e alta, cursava boas escolas e impregnou-se das mudanças revolucionárias no campo das artes e do conhecimento. Consciente e inovador, o sr. X foi um indivíduo privilegiado num país onde as grandes massas viviam em condições sub-humanas, cujas necessidades urgentes tornavam-nas alheias a tais pautas. Reunia o sr. X condições para, com base nos nobres ideais que trazia consigo, liderar um projeto reformista para levar o Brasil a cumprir seu desígnio de país do futuro, próspero e menos desigual.

Tendo frequentado os mesmos ambientes e sujeitando-me às mesmas influências, imaginei conhecer bem o sr. X. Assistindo a figura burlesca que se tornou, vejo que me enganei. Não reconheço na postura por ele hoje assumida aquele protagonista cheio de vigor e anseios que, há poucas décadas, queria transformar o mundo. Causa-me perplexidade, em especial, o apagão cultural de que o sr. X foi vítima ao chegar à “melhor idade”.

Constato que o tempo fez mal ao sr. X, cujo prazo de validade revelou-se não passar dos 50 anos. Tornou-se ele um ferrenho conservador (algo compreensível para alguém de valores estabelecidos que resiste a assimilar o novo). Mas foi além: renunciou aos valiosos princípios que, com orgulho, outrora defendia.

Ficou restrito a seu limitado mundinho burguês, empachado de bens supérfluos a que as legiões de miseráveis que padecem sem emprego nem perspectivas jamais terão acesso. Esgotou e deteriorou sem responsabilidade os recursos naturais que agora faltam aos sobreviventes da calamidade ambiental.  

Hoje, vejo com tristeza muitos respeitáveis srs. X repetindo gaiatices como ‘Deus, Pátria e Família Acima de Tudo’ e outros bordões fascistas que combatia quando era um rebelde idealista. O sr. X esqueceu-se de tudo o que lhe foi ensinado nos livros que deveria ter lido, nos filmes que deixou de assistir, nos museus que jamais frequentou, no teatro no qual nunca pisou, até cair na esparrela da ‘cloroquina’.  Abriu mão do pacifismo para encampar a campanha miliciana em prol de armas.

Parece que o sr. X desconectou-se das legítimas demandas juvenis. E não falo de temas polêmicos como drogas, identitarismo ou aborto. Mas de educação, cultura e meio-ambiente cuja defesa seu reacionarismo fez com que abrisse mão.  Faz jus à alcunha pejorativa de ‘coroa’ e ‘careta’ que as novas gerações lhe impingem.

Parte dos srs. X não está mais entre nós. Hoje, os remanescentes, que vêm driblando a morte e a senilidade, encontram-se aposentados e passam seus dias praguejando contra os novos tempos sem, porém, abrir mão do que as novas tecnologias têm de pior: fake news e mensagem de ódio contra tudo que ameace seu retrógrado conformismo, repassadas nos patéticos grupos de WhatsApp compostos por outros ‘tiozões’.

O maravilhoso mundo que o sr. X prometeu entregar a seus filhos e netos reverteu-se num planeta esfacelado em que as nações se engalfinham por maior poder bélico, os magnatas acumulam fortunas incalculáveis e bilhões de famintos perambulam como zumbis pelos continentes e mares em busca de um lugar menos aflitivo em que possam sobreviver.

Tchau, sr. X, seu esfrangalhado reino de mentiras e falsidades está chegando a um melancólico fim. E não deixará saudades.

 

 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

QUEM PRECISA DE MITOS?

“Mas o que mais me dói, você escolheu errado seu super-herói” (As Frenéticas / Aguilar)

 MITO (do grego ‘Mythos’) é uma fantasia presente no imaginário coletivo, concebida por um grupo para servir de suporte a seus anseios. Um dos maiores mitos de nossa era é o do ‘SALVADOR DA PÁTRIA’. Renato Janine, professor da FFLCH da USP, explica que essa categoria de mito foi a nós legada nos tempos da colonização através do ‘sebastianismo’, crença surgida com a figura de Dom Sebastião, rei de Portugal. Após a morte deste monarca na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, reza a lenda, ele retornaria dos céus para redimir o povo lusitano de seus infortúnios.

Baseado em tais raízes históricas, o povo brasileiro tornou-se pródigo em produzir salvadores da pátria como o ‘varre vassourinha’ (Jânio) ou o ‘caçador de marajás’ (Collor), cada vez que o acúmulo de pepinos enseja a vinda de um paizão autoritário para ‘colocar ordem na casa’. Evoca então essa criatura mitológica acreditando que ela possa sozinha dar um jeito na encrenca. Aliás, essa é uma característica do mito: ele dispensa da colaboração de outros, já que, tal como um super-homem, é dotado de poderes extraordinários presumidos pelas massas que nele confiam cegamente.

O advento desses semideuses não combina com a democracia, um regime cujo funcionamento depende da atuação harmônica de diversos atores em prol do bem comum. Nessa modalidade de governo, ninguém se sobrepõe aos demais e todos se submetem ao ‘império da lei’. Em nações desenvolvidas da Europa que possuem regimes estáveis e maduros e desfrutam de elevado padrão de vida e educação de qualidade, não há espaço para a ascensão desses justiceiros supremos. Os governantes são tratados como servidores públicos, meros executores de ações definidas pela sociedade organizada. Se saem da linha, são sumariamente escanteados pelos mecanismos do próprio sistema e, dependendo do deslize, terão de se haver com a justiça.

Infelizmente, o Brasil está a anos-luz desse estágio civilizatório. Nossa democracia é manca, os políticos são medíocres, sem espírito público e não contam com credibilidade da população. Esta por sua vez não está nem aí com os desmandos dos eleitos nem deles cobra idoneidade. Essa índole do brasileiro explica a necessidade de ‘salvadores da pátria’ que resolvam pra ele essas pendengas. Um chefão mão de ferro que vai dar um jeito em tudo e ‘botar a bandidagem pra correr’.

Não foi por acaso que, após um período turbulento com crescimento nulo, desemprego nas nuvens, criminalidade em alta e corrupção correndo solta, surgisse um novo ‘salvador da pátria’. Com políticos pilantras e um judiciário que não funciona, ambos cuidando mais de suas mordomias e de seus interesses corporativos do que das agruras do povão, o eleitor desiludido anteviu na figura redentora de um capitão ‘linha dura’, o personagem ideal para 'colocar as coisas nos eixos'. Bolsonaro soube assumir com competência uma imagem antissistema, contra ‘tudo que está aí’, e emplacou como ‘mito’ da hora.

Por isso, não adianta tentar desconstruí-lo com menções a riscos à democracia e ameaças autoritárias, uma vez que seus apoiadores são imunes a tais insultos. O sujeito não foi colocado ali por seus predicados pessoais ou suas virtudes como estadista, mas para acabar com a ‘bagunça’ que pretensamente tomava conta do país. Está simplesmente desempenhando o papel de mito. É ele o próprio “MITO”, como é chamado, o Messias (que está até em seu nome). Pode fazer e desfazer a seu bel prazer e será sempre idolatrado por um séquito de veneradores fanáticos como ente divino, acima do bem e do mal. Tudo o que realizar tornar-se-á ungido pela mão de Deus e o que rejeitar cairá em maldição eterna.

A cloroquina por ele enaltecida foi acolhida como elixir dos deuses e as hordas acorreram em defendê-la perante os ímpios esquerdistas, partidários de vacinas. Já as urnas eletrônicas, obras do demônio, foram em uníssono desqualificadas nas redes sociais. Obviamente, os seguidores de Bolsonaro não têm a menor ideia do que estão defendendo ou criticando. Apenas replicam os ideais de seu ídolo celestial. Afrontam os ministros do STF que até ontem sequer imaginavam que apito tocavam. Desmentem cientistas e infectologistas renomados com base no WhatsApp repassado por ordem do pastor. Desconfiam da imprensa e da palavra de especialistas, achando que tudo não passa de um complô comunista para derrubar o MITO. Para derrotá-lo, não há como lhe contrapor ideias ou argumentos. Só mesmo confrontando-o com outro Mito. Aí entra o Lula que, acima de ideais socialistas, encarna a figura mítica de ‘pai dos pobres’.

Até quando, para resolver nossos problemas, precisaremos de mitos? Como figura fantasiosa, nos levará à frustração, ao cairmos na real. Impede que a sociedade desenvolva mecanismos impessoais e duradouros para superar suas mazelas. As pessoas que necessitam de mitos são, de certa forma, infantilizadas, não assumiram a responsabilidade de tomar o destino em suas mãos e precisam delegar essa função a um ‘todo-poderoso’. Situações assim produziram Hitler, Stálin, Trump, Putin e outros mitos nefastos com legiões de adoradores. Espero que, de tanto dar cabeçadas, os homens aprendam a se apropriar do poder de aperfeiçoar o mundo sem precisar de figuras messiânicas que lhes mostrem o caminho.

 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

MATANDO O TEMPO

 
“Tempo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses mais lindos” (Caetano Veloso, Oração ao Tempo)

Quando criança, eu observava fascinado as mutações do tempo. Não me refiro ao tempo medido pelo relógio, mas como condição meteorológica, medido pelo termômetro, pelo barômetro, pelo pluviômetro. Enquadrava-se o tempo no rol dos enigmas que estão além da compreensão dos reles mortais, assim como o infinito ou o mistério da vida. As alterações do tempo, imaginava eu, dependiam dos humores dos deuses de plantão, a quem cabia a incumbência de reger a dança dos ventos, o ribombar dos trovões, o movimento das nuvens e a confluência dos raios solares. Determinavam eles se o tempo seria chuvoso, ensolarado, frio, quente. E nós humildemente acatávamos. Quando inspirados, brindavam-nos com um deslumbrante arco-íris, que só podia mesmo ser obra celestial.

O comportamento errático do tempo era intrigante.  Fazia calor em épocas em que a disposição do planeta levaria a crer que deveria fazer frio. Passavam-se, sabe-se lá por que cargas d’água, meses sem chover, reduzindo ameaçadoramente o nível das represas e colocando em xeque a presteza das torneiras de jorrar o precioso líquido todo o tempo e sob qualquer tempo. Nossa capacidade de interferir nos propósitos das nuvens que, teimosas, recusavam-se a colaborar, era nula. Para superar os contratempos do tempo, só mesmo rezando pela intercedência de São Pedro. Restava abastecer-nos com trajes e acessórios apropriados como capas, guarda-chuvas, botas, casacos, cobertores das mais variadas espessuras, para nos precaver dos desígnios do tempo.

Apesar de tais oscilações, havia certa regularidade nas intermitências do tempo que nos trazia uma sensação de segurança. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a umidade do ar nunca seria tão baixa quanto à do deserto do Saara e a temperatura jamais cairia a ponto de a água virar gelo. As tênues variações que vinham ocorrendo nem nos fizeram perceber que de repente na “cidade da garoa” parou de garoar.

Hoje, quando escuto falar em ‘mudanças climáticas’, sinto um arrepio na espinha. Como assim mudanças climáticas? Quer dizer que o tempo vai deixar de obedecer às determinações divinas conforme vinha ocorrendo desde os tempos de Adão e Eva? E o que mais vai mudar? Não teremos mais primaveras e outonos? O céu vai também deixar de ser azul?  Os raios do sol deixarão de brilhar pelas manhãs em nossas janelas?

Quando os telejornais passaram a incluir, além dos tediosos boletins diários sobre o tempo, eventos climáticos catastróficos com temperaturas extremas nunca vistas em décadas, tufões devastadores, secas, incêndios e enchentes cada vez de maiores proporções, nossa reação era dar os ombros e dizer “o tempo ficou doido”, ajustando o ar condicionado para adequar artificialmente as condições climáticas dentro de casa a nossas conveniências. E assim podemos tocar a vidinha sem nos preocuparmos quem era o responsável pelas anomalias do tempo ‘lá fora’. E o resto que se exploda.

Não sei para você, caro leitor, mas para mim soa terrivelmente assustador que a interferência do homem no planeta tenha chegado a tal ponto que até o perene, sublime e ‘atemporal’ tempo está sendo afetado. Sim, pois o que ocorre no clima não é fruto de uma praga divina, mas resultado de uma criminosa ação humana. Criminosa, sim. Pois o ato de agredir o meio-ambiente que abriga a vida no planeta é tão delituoso quanto o de atentar contra o lar, onde residimos com nossa família.

As condições para a formação da vida na Terra estão sendo alteradas obscenamente pelo homem e ninguém se importa. Nossa civilização doentia aceita com naturalidade a agressão impune à natureza. E, em alguns casos, os infratores são exaltados como desbravadores e até incentivados pelo nosso bizarro presidente.

Sim, meu amigo, devo pesarosamente informar-lhe: o tempo está mudando. E isso não quer dizer que vai ficar nublado. Mas não se preocupe. O tempo pode fechar ainda mais. Há outras ‘mudancinhas’ em curso enquanto você lê esse texto. Os mares estão infestados de plásticos, os rios envenenados por mercúrio, o ar está se tornando irrespirável, as fontes de água potável estão rapidamente se esgotando e em vinte anos, quase metade da população mundial não terá como saciar suas necessidades.

O mundo tal qual estávamos acostumados não existe mais. E, tal qual ocorre com o filme “Não Olhe pra Cima”, a população está pouco se lixando. Ninguém abre mão sequer da conveniência do saquinho de plástico do supermercado, confiando que, como por milagre, o mesmo ‘progresso’ que gerou esse vendaval de más notícias consiga salvar o tempo. A tempo.

Resta perguntar a nossos filhos se eles concordam com o ‘admirável tempo novo’ que estamos deixando para o tempo deles na Terra.

 

 

 

 

domingo, 7 de agosto de 2022

MULHER

 Minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver (Gilberto Gil, Super-Homem)

A humanidade vem sendo regida há milhões de anos pelo macho da espécie. Chegou a hora de reconhecer: não deu certo! Como genuíno representante do sexo masculino, declaro peremptoriamente que entrego os pontos. Desisto! Nós, homens, já fizemos cagadas suficientes. De minha parte, anuncio que passo o bastão às mulheres a quem humildemente me submeto, elegendo-as para cargos de comando e alçando-as a todas as atividades que envolvam exercício de poder (aqui em casa, a Cici que o diga). Pior do que está não vai ficar. Sei que não serei acompanhado por outros da minha estirpe pois conheço bem o tipinho que encarno: viril, orgulhoso, não dá o braço a torcer.

Tenho um argumento infalível pra convencer meus iguais. Já que você, ô marmanjo, não tem brio suficiente para admitir sua incompetência, pense nos seus filhos e netos. Se você os ama, dê-lhes ao menos a oportunidade de terem um futuro nesse mundo em frangalhos que sua gestão infeliz produziu.   

Não imagino, por exemplo, que alguma mulher faria a insanidade de lançar bombas em cidades, assassinar adversários em massa, promover chacinas e genocídios, cultuar armas e perpetrar outras bárbaras atrocidades a seus semelhantes. As exceções que me recordo são as mulheres-bomba, que agiram a mando de... homens.

Ou viramos a mesa ou o dito “homem” - por extensão, a raça humana, aí incluídas não apenas as mulheres mas as inúmeras categorias sexuais intermediárias emergentes - estará em poucas dezenas de anos extinto do planeta.

O mundo como hoje conhecemos, vulnerável a vírus letais, ameaça nuclear, tragédia social, apocalipse ambiental, foi uma construção masculina, tem a face grotesca e brutal do inepto bicho-homem. Ou colocamo-lo sob nova administração, ou dito cujo já era.

Trata-se de uma constatação lógica e me admira que a grande maioria dos indivíduos (especialmente aqueles que se orgulham mais do seu pênis do que do seu cérebro) não tenha ainda chegado a essa conclusão tão evidente.

Alguns machos deslumbrados hão de argumentar, ufanistas: “Como assim? E as imensas conquistas da nossa civilização, os avanços da ciência e da tecnologia, a qualidade de vida que hoje desfrutamos?” Do que você está falando, cara pálida? Você acha que compensa viver até os 100 anos, amedrontado, numa redoma plastificada cheia de artificialidades, em condomínios fortificados, com ar condicionado para enfrentar o aquecimento global e celular 5G para compensar sua incapacidade de sociabilização? Fala sério!

Não, não estou me rendendo às teses feministas. A pauta pela sociedade igualitária não me fascina. Homem e mulher são seres biológica e psicologicamente distintos. O homem prima pela força física, pela razão, pela lógica. Já o chamado “sexo frágil” (que piada!) distingue-se pela formosura, pela sensibilidade, pela intuição, pela resiliência. Por ter o atributo da força, o gostosão impõe-se à delicada mulher que se submete a seu algoz que usa da bestial violência para ditar suas regras. 200 mil anos de civilização não foram suficientes para revogar a lei do tacape.

O capitalismo adaptou-se perfeitamente ao patriarcado e definiu o papel de cada gênero no sistema. Ao homem, ‘chefe’ da prole, cabe negociar suas habilidades no mercado de trabalho e com a grana obtida, sustentar os gastos domésticos. A mulher fica em casa lavando louça, limpando a privada e cuidando das crianças, trabalhos ‘inferiores’ sem remuneração, não monetizados pelo mercado. Que sistema hipócrita! Gratifica apenas as atividades que interessam ao capital, exercidas pelo membro empoderado do casal. A fêmea desempenha a incumbência ‘acessória’ de amamentar o bebê e manter estruturado o lar, sendo dependente financeiramente do varão folgado que se embebeda e farreia nos botequins. Sejamos honestos: isso é uma deslavada exploração de mão-de-obra.

A natureza concedeu à mulher uma função muito mais nobre e, para que ela a exerça com louvor, não precisa ocupar o espaço do homem. Se pleitear isso, estará admitindo que os valores masculinos são superiores. O que é preciso é que seja reconhecida a importância do seu papel, muito mais imprescindível que o do provedor financeiro.

A mulher para brilhar não tem que ser cientista, filósofa, soldada, enxadrista, jogar futebol, lutar muay thay. Deixe os homens se sobressaírem nessas áreas. As damas têm habilidades muito mais indispensáveis na preservação do equilíbrio social do que as dos vagabundos, inclusive a principal de todas: gerar a vida.

Por isso, caro amigo e cara amiga, está na hora de corrigir o rumo e mudar as regras do jogo. A começar por redefinir quem deve dar as cartas.

 

 

 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

ORA PRO NÓBIS


 Reza a lenda que, pouco antes de completar dois milênios de sua partida para o paraíso celestial, Jesus retornou à Terra para conferir in loco os frutos de sua evangelização.

Embora suas pregações tivessem tido lugar na Galileia, constatou que nessa região predominavam agora aqueles que professavam credos diferentes.

Mas, deu-se por satisfeito em saber que, além do Mediterrâneo, sua doutrina expandira-se e havia, do outro lado do mundo, grande número de pessoas que seguiam (ou diziam seguir) seus ensinamentos. A palavra de Deus atravessara os mares e catequizara diferentes civilizações.

Escolheu o Mestre visitar um grande povoado cristão cujo nome homenageara um de seus mais fervorosos discípulos: São Paulo. Nessa localidade ocorreria uma gigantesca procissão ou uma romaria, apelidada de ‘Marcha para Jesus’, para afirmar a fé na palavra divina de que fora portador. Para melhor conhecer o que se passava no coração dos fiéis, o Salvador misturou-se anonimamente às massas.

Sua aparência franciscana, para sua surpresa, parecia ofender os beatos que ‘marchavam’ a seu lado. Olhavam com desdém para sua túnica despojada, suas sandálias de tiras e especialmente seus longos cabelos e sua barba desalinhada, que pareciam agredir a assepsia espartana da multidão.

Seu aspecto humilde e desleixado destoava dos demais indivíduos que portavam penteados recos e trajes alinhados onde predominava o verde-amarelo. Alguns bradavam por um outro Messias (anticristo?) aclamado como “mito”.

Indiferente aos olhares hostis, caminhava Jesus sentindo-se uma ovelha desgarrada daquele rebanho, quando em meio às faixas e bandeiras nacionais, sobressaiu-se um enorme objeto metálico que parecia ser uma cruz meio manca alongada por um cano.

Indagou Cristo qual o significado daquele estranho artefato exposto com destaque na ‘parada’, quando lhe foi informado tratar-se de uma ‘pistola’ gigante. “E para que serve?” “Ora, serve para matar”, responderam-lhe. “Matar? Matar quem?” “Os inimigos, bandidos, comunistas, índios, sem-terra”. O Bom Pastor, cada vez mais confuso, insistiu: “Mas por que matar esses filhos de Deus ao invés de convertê-los pacificamente?”

Veio-lhe à mente com clareza os sermões com tanta precisão transcritos nos evangelhos: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos insultam. Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra”. (Lucas 6:27-31). Em suas pregações de amor, jamais caberia ao bom samaritano eliminar de outrem o dom da vida, que apenas a Deus pertence.

O comportamento questionador e as embaraçosas indagações daquele lunático começaram a incomodar a plateia. Passaram a ameaçar o santo homem, tachando-o de predicados depreciativos cuja acepção desconhecia: “cai fora, riponga esquerdopata”, “vai pra Cuba, seu vermelhinho”, “vaza, barbudo maconheiro”.

Não reconhecido e odiado e justamente por aqueles que deveriam reverenciá-lo, o Redentor retornou entristecido para o Reino de Deus, onde amargou o insucesso de sua missão regeneradora. Em suas orações, foi, todavia, condescendente: “Pai, perdoai-os. Passaram-se dois mil anos e eles continuam a não saber o que fazem”.

 

 

sábado, 16 de julho de 2022

MISANTROPA DE ELITE

 

Dizem que quando Deus criou o mundo, concentrou as benesses em determinado pedaço do planeta. O Todo Poderoso resolveu privilegiar tal recanto, dotando-o com as mais belas paisagens, as florestas mais exuberantes e coloridas, os rios mais caudalosos e cristalinos, as praias mais deslumbrantes. Nesse cantinho abençoado de éden não haveria tufões, vulcões, terremotos, nem desertos inóspitos. Ao contrário, abundariam terras férteis nas quais, como já dizia Caminha, no primeiro relatório oficial sobre as virtudes do torrão, “em se plantando tudo dá”.  Viria a se estabelecer ali um gigante país, que se afirmaria sem guerras sangrentas.

O comitê de anjos que assessorava a obra celestial inquietou-se com a aparente falta de equanimidade do Mestre que colocava em xeque o senso de justiça divina. Um deles aventurou-se em contestar o Rei dos Reis. “Oh, Senhor! Não estareis, porventura, Vossa Onipotência, cujos desígnios sempre são cobertos de infinita sabedoria e isenção, sendo excessivamente generoso e magnânimo com aquela específica porção de terra, aquinhoada de atributos tão desproporcionalmente prodigiosos sem nada que lhe deprecie?” “Não vos aflijais, fiel querubim, com a demasiada bem-aventurança desse lugar sobre os demais”, retrucou o Altíssimo. “Aguardai só para ver o ‘povinho’ que vou lá colocar”

Essa história é um tanto cruel com nosso ‘povinho’. Ainda que o brasileiro não seja modelo de perfeição, tem lá suas virtudes: é cordial, alegre e tal. Não é certo creditar à “brava gente brasileira” a desgraça que se abateu sobre o local para anular as graças concedidas, convertendo o abençoado país em berço de miséria, desigualdade e violência que o transformaram de paraíso em inferno.

Hoje, quando vemos as pessoas apinhando-se nos aeroportos para abandonar a ‘pátria das bonanças’ e serem felizes em Portugal, Canadá ou Austrália, só podemos lamentar. Os mais capazes e habilidosos, cansados de esperar as coisas melhorarem, resolveram largar tudo para tentar a sorte em paragens mais promissoras onde possam construir uma vida, um futuro. Estão errados? Se vierem me consultar, digo sem pestanejar: “Boa viagem, irmão. Vá sim para um lugar decente onde seu diploma seja prestigiado, as ciências, a cultura e as artes valorizadas, os recursos naturais protegidos e os povos originários respeitados. Onde valha a pena ser honesto e ninguém morra de fome por falta de recursos. Onde os políticos não te façam de idiota, as leis sejam por todos acatadas e não mudem de ano em ano. Onde seja possível dirigir-se de um lado para o outro com a certeza de chegar com vida a seu destino, sem ser assaltado ou molestado.” É pedir muito?

Seja como for, a responsabilidade pelas mazelas que aqui se abateram não pode ser imputada ao “povinho” que veio a ocupar a terrinha de Cabral. A tragédia do lugar deve ser debitada àqueles que o lideraram. Ou melhor, que o manipularam para servir a seus interesses.

Nossas egocêntricas elites são uma verdadeira vergonha nacional. Jamais usaram sua posição de comando para construir um projeto digno de nação que a todos incluísse. Visavam apenas pilhar sem dó todo o sumo do país e seu povo para enriquecer, sem nada oferecer em troca. Para, quando nada mais for mais possível sugar, mandar-se com seus dólares para Miami.

Estão sempre do lado errado da história e da emancipação nacional, conspiraram contra a independência, opuseram-se à abolição, deram sustentação aos generalecos que nos mantiveram sob jugo por quase 20 anos numa ridícula republiqueta de bananas. E agora alçaram ao poder um regime miliciano-evangélico retrógrado e obscurantista comandado por um brucutu inculto que distribui armas, baixarias e ignorância.

Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. O Pai Eterno pode retomar o sono dos justos. Tem Ele agora na ponta da língua a resposta certa ao questionamento dos anjos: “Aguardai para ver quem são as pessoas que vou colocar pra TOMAR CONTA desse lugar”.

 

 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

DESAMBIENTADOS

 

“Quem cala não consente, as flores sabem mais, em silêncio elas sentem a dor nos vegetais, adornos vegetais” (SEGREDOS VEGETAIS, Dércio Marques)

A temática ambiental não costuma render muito ibope num país onde a opinião pública está mais focada em assuntos de importância transcendental como os divórcios dos famosos e os eliminados do BBB. Ainda assim, todo mundo tem um xodozinho pelo meio-ambiente como tem por cãezinhos fofos e samambaias nas varandas. Vestem modelitos “ecológicos” de grifes ‘greenwashing’ e se acham quites com o planeta e com o vizinho que recicla lixo.

A degradação ambiental parece preocupar pouco e, exceto em catástrofes como as de Brumadinho ou Fukushima, não traz grande comoção. Age ela sub-repticiamente, seus efeitos são graduais e cumulativos, embora ao final possam ser avassaladores.

Talvez cause espanto saber, por exemplo, que, em 2020 e 2021, a poluição do ar matou, segundo a OMS, mais gente do que a COVID. E, pior, os sobreviventes não escaparam ilesos: ficaram mais propensos ao câncer e a todo tipo de doenças, especialmente respiratórias. São quase 7 milhões de vidas ceifadas que, somadas às decorrentes de outras formas evitáveis de deterioração ambiental, chegam anualmente a 13 milhões.

São diversas modalidades de degradação que, ainda que acarretando trágicas sequelas sociais e um imensurável número de óbitos, sequer merecem destaque no jornal. Desmatamento, emissão de carbono, desertificação, redução da camada de ozônio, mudanças climáticas, aquecimento global, são vistos como ‘etéreos’, coisas de eco-chatos.

Segundo a OMM (agência especializada em clima ligada à ONU), desde que vem sendo monitorada, em 1880, a temperatura anual do globo alcançou suas três mais altas médias em anos da última década: 2016, 2019 e 2020. Coincidência? Os climatologistas acostumados a observar variações brandas, perceptíveis apenas ao longo de milênios, estão abismados com essas alterações bruscas, derivadas da ação humana.

Uma elevação de 2 graus na temperatura média da Terra já seria o bastante para provocar efeitos cataclísmicos, como dizimar 1/6 das espécies vegetais e animais, reduzindo dramaticamente a biodiversidade do planeta, além de produzir derretimento de geleiras e aumento do nível dos oceanos com consequências devastadoras sobre centenas de milhões de habitantes das regiões costeiras, gerando quebra na produção de alimentos, fome, intensos movimentos migratórios e crise social.

Apesar dos irrefutáveis dados que denotam que o clima está mudando com uma velocidade espantosa (incidência anormal de incêndios, estiagens, tempestades, tufões etc.), os incrédulos e negacionistas preferem ignorar os avisos da natureza e seguem em sua escalada insensata rumo ao abismo, a fim de não afetar a economia, sobretudo a de seus próprios bolsos.

Embora as perspectivas piorem a cada ano, os relatórios dos cientistas são menosprezados pelos governantes. Os poucos acordos estabelecidos pelas convenções não são cumpridos e as tímidas metas são desrespeitadas, apesar dos alertas de que a situação já passou do ponto de “não retorno”, em que as medidas executadas não servirão, a partir de agora, para resolver a situação mas apenas para atenuar seus danos.

As necessárias mas impopulares intervenções para mitigar os efeitos nocivos vão sendo empurradas com a barriga pelos governantes, preocupados apenas com pautas de curto prazo que rendem votos.

O presidente Macron da França, há poucos meses, enfrentou protestos de rua e uma forte queda de popularidade que quase lhe custou a reeleição por querer implementar a agenda ambiental de taxar combustíveis poluentes para fomentar a adoção de “energia limpa”.

Por aqui, a tacanha aversão da população a questões ambientais é ainda pior. A opinião pública ficou muito mais indignada em decorrência do aumento do preço do diesel e da gasolina (combustíveis fósseis cujo uso empesteia o ar) do que pela devastação da Amazônia e pelo genocídio perpetrado contra os povos indígenas.

Plantadores de soja e criadores de gado que enriquecem destruindo florestas e se apropriando de terras públicas em seu próprio benefício são tratados como heróis nacionais. Os políticos locais por eles financiados podem-se dar ao luxo de promover o extermínio de espécimes da flora e da fauna sem sofrer abalos em seu desempenho eleitoral. Afinal, animais e plantas não votam. Os únicos que se importam são os abnegados ambientalistas, tratados como vilões, acusados de atuarem a mando de ‘escusos interesses internacionais’.

Essa falta de empatia com o planeta que nos abriga parece acometer sobretudo a geração mais velha que tem a mente carcomida pela mesquinhez, criada sob o signo do crescimento econômico infinito e que se impressiona mais com índices de evolução do PIB do que com índices de desmatamento.

Confiam talvez no poder da grana que vêm acumulando para conseguir se abrigar em cidadelas fortificadas onde, no futuro distópico que os aguarda, possam se precaver do assalto de legiões de famintos maltrapilhos que perambularão por aí como zumbis, engalfinhando-se pelos restos de alimentos deteriorados e por um gole de água empesteada.

Ou talvez aguardem que os ricaços que usam seus bilhões para financiar viagens espaciais suntuosas, possam encontrar uma alternativa sideral ao planeta Terra para se estabelecer, onde possam expandir seus tentáculos e comercializar seus produtos hi-tech para ET’s.

Assassinam o futuro de seus próprios filhos e netos, que deles receberão como herança um planeta esfrangalhado em que a vida subsistirá apenas sob a forma de ratos, baratas, moscas, vermes e outros seres abjetos. Um lugar cinza, sombrio, árido, putrefato, triste e mórbido. Arrancando-lhes a oportunidade de desfrutar do planeta azulado, outrora o mais belo do Universo, que abrigava límpidos mares, praias imaculadas, céus estrelados, regatos cristalinos, campos floridos e bosques verdejantes.

A revolta e o inconformismo desses jovens de quem está sendo privado, devido à ganância de seus pais, o direito de respirar ar puro, ingerir alimentos frescos sem veneno, escutar o canto dos pássaros, sentir na pele a brisa amena de verão, conectar-se com a vida pulsante da Natureza, são a última esperança de nos salvar desse quadro desalentador.