quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

TERRAPLANISMO JURÍDICO


 Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu. (Roda-Viva, autoria presumida: Chico Buarque)

 

Chico Buarque, que ingressou com uma ação judicial contra o deputado Eduardo Bolsonaro por uso em campanha eleitoral da canção Roda Viva, sem autorização, viu seu pleito negado por uma juíza, sob alegação de que não há provas de que a música seja efetivamente de Chico. Extraio desse evento três deduções.

A primeira é a comprovação de que, inobstante a controversa decisão judicial, a obra de Chico permanece atemporal e unanimemente reconhecida. Ainda que tenha afinidades com a esquerda, o compositor carioca é reverenciado por gente de todos os matizes ideológicos, inclusive o filho 03 do presidente, representante máximo da extrema direita, que não vacilou em usar uma composição de seu desafeto político em sua propaganda eleitoral. Décadas de dedicação à música, ao teatro e à literatura tornaram Chico um patrimônio da cultura nacional, idolatrado por todos os brasileiros. Pelo menos os que o conhecem.

Essa última frase nos remete à segunda e desalentadora dedução de que a imbecilidade geral que vigora no país atingiu até respeitáveis integrantes do poder judiciário. Tomo como base tal suposição para não fazer mau juízo da juíza. Explico. Confio em sua boa intenção em julgar com base estritamente no (limitado) arcabouço jurídico de que é detentora, não tendo sido sua sentença influenciada por torpes motivações ideológicas que pudessem macular a lisura de suas apreciações. Em outras palavras, prefiro considerá-la tapada do que desonesta.

Por mais bolsonarista que pudesse ser a togada, não creio que, em nome de suas preferências políticas, expusesse-se à execração pública, humilhada por ser conhecida como “aquela juíza que não sabia que Roda Viva era do Chico Buarque”.

Quero crer que, agindo de boa-fé, tenha sido ela movida exclusivamente pelo empenho em portar-se com máximo rigor jurídico, obrigando as partes litigantes a juntar todos os elementos materiais cabíveis para que pudesse proferir uma sentença fundamentada nos cânones da ciência forense que, no caso, exigiam a completa instrução nos atos do processo com as necessárias provas documentais. Afinal, a regra processual impõe que se apresente, com a petição inicial, os documentos indispensáveis à propositura da ação.  O objetivo final é que seu julgamento entrasse para os anais da jurisprudência por sua excelência, nunca para ser objeto de achincalhe, uma sentença risível a figurar nos compêndios das decisões esdrúxulas do Direito.

A terceira e última dedução, a meu ver, a mais preocupante, é um alerta para os precedentes perigosos a que estamos adentrando para fundamentar a decisão da honrada magistrada analfabeta. Ora, supondo-se que a segunda dedução seja verdadeira, subentende-se que a juizeca (com perdão da expressão), por mais absurdo que possa parecer, de fato ignore quem compôs essa desconhecida melodia intitulada Roda Viva. Não seria de se estranhar que a meritíssima tivesse como referências musicais algo mais próximo a Gusttavo Lima. Talvez a magistrada, mesmo contando com algo em torno de 40 anos de idade, boa parte dedicados à formação em assuntos didáticos e cultura geral, desconheça a existência de um Chico Buarque.

Assim fosse, não custava nada à nobre e desinformada mediadora, com vistas a simplificar os trâmites dos autos e evitar desnecessárias delongas que afligem os milhões de processos que atolam o Judiciário, resolver em minutos a questão, acessando no Google alguns dos milhares de sites de renomados jornais, revistas especializadas, teses de mestrado em PDF, Wikipedia, Catálogo da IMMUB etc. Não faltam na rede mundial fontes fidedignas de consulta que reportam Roda Viva como uma das antológicas canções da era dos festivais, um marco importante na história do país. Tão prestigiosa que inspirou até o famosíssimo programa homônimo de entrevistas da TV Cultura. Sem falar nos vídeos no Youtube, com inúmeras versões da canção, citando sua autoria. Em poucos minutos, teria em mãos farto material probatório atestando irrefutavelmente a paternidade da referida canção.

Com isso, bastaria aplicar a norma (que descobri ao xeretar) de que fatos públicos e notórios prescindem de provas documentais (artigo 374 do Código de Processo Civil). Caso aplicasse dispositivo básico, teria resolvido a questão sem perda de tempo. Esse simples ato de bom senso pouparia a um dos maiores artistas do país passar pela situação kafkiana de brigar na justiça para provar que sua filha é filha sua.

Mas não! A juíza estava empenhada com esse imbróglio em criar um marco contencioso que a retirasse da mediocridade. Certamente o pioneirismo de sua decisão criaria jurisprudência estabelecendo que, a partir de agora, todas as afirmações dos demandantes, por mais óbvias que possam parecer, devem vir acompanhadas de fundamentação protocolar, ou seja, comprovadas com documento emitido por quem de direito, com firma reconhecida para demonstrar formalmente que tomate não é caqui.

Roda Viva é de Chico? Prove!! Chico Buarque existe mesmo ou é um robô? Quem pode afirmar que Garota de Ipanema é de Tom e Vinícius? A Quinta Sinfonia de Beethoven é mesmo de Beethoven? E os afrescos da Capela Sistina são de Michelangelo? Quem disse? O papa? E a Teoria de Relatividade é desse tal de Einstein? É relativo... Cadê o papel passado em cartório? A Terra é redonda? Nada indica que seja a não ser a imprensa mentirosa. Quem disse que a Terra gira em torno do Sol? Na Bíblia não consta tal registro. Não podemos nos guiar pelo ‘achismo’.

Estamos imersos na ‘cultura do WhatsApp’, em que as circunstâncias alardeadas pela imprensa (“nas mãos de esquerdistas”) e o conhecimento científico (“apropriado pelo globalismo marxista”) valem menos do que a palavra da comadre do culto. Estamos chegando a um novo estágio no campo do saber em que, num mundo dominado por fake news, não existem fatos, apenas interpretações.

Por isso, a afirmação “Roda Viva é de Chico” está eivada de inaceitáveis juízos de valor que nada valem num tribunal. Diziam enganosamente que o nazismo é de direita. Mentira! Ancorado na sabedoria legitimada por suas longas barbas negras (que até que se prove o contrário não eram postiças), o eminente Professor Enéas já comprovou que nazismo é de esquerda. As vacinas previnem as doenças? Quem disse? Se o pastor afirma que o correto é deixar a cura nas mãos de Deus.

Sim, estamos vivendo uma época de quebra de paradigmas. Quando, amigo leitor, deparar-vos com informações falsas tais como “Roda Viva é de Chico”, duvidai. Nos tempos de pós-verdade, não há mais certezas e todos os insuspeitos estão sob suspeição.