segunda-feira, 2 de novembro de 2015

UMA CACHORRA CHAMADA BANDIDA



Nesse dia que é pretensamente dos mortos, é a você que se foi, Bandida, que dedico essas inconsoláveis palavras porque é você que é o propósito de minha tristeza de hoje.
O sol há pouco relutava em brilhar, tentando forçar espaço por entre as renitentes nuvens que buscavam conferir a austeridade que a solenidade da data reclamava. Quase me fez esquecer que hoje deveria ser um dia de melancolia ou ao menos de reverência. A notícia da sua prematura morte me trouxe a apropriada consternação.
“Hã? Como assim prematura?”, diriam. Pois se você já carregava uns 16, 17 ou 18 ou sabe-se lá quantos extensos anos, mais que suficientes para cumprir sua missão canina aqui no planeta em que os homens e não os bichos determinam a idade para completar o ciclo de uma vida bandida.
Pois para mim que a conhecia há um ano e pouco, sua inesperada morte foi sim bastante prematura. Os anos transcorridos não dão a escala adequada para mensurar o grau de tristeza que ora me acomete.  Nesse pouco e descontínuo tempo de convívio, eu nem mesmo aprendera a brincar direito com você, separados que estávamos por 20 km de Via Anchieta. Nem sequer sentira o vigor simulado de seus dentes enfraquecidos quando você fingia que me mordia na troca de eu fingir que a atiçava. Fingindo daqui e fingindo dali, criamos sem fingir uma incipiente cumplicidade que a maioria dos humanos não poderia de verdade entender.
Você se foi. E só deu um repentino e último ‘ai’ ou talvez um ‘au’ de adeus avisando que estava partindo. Não pedindo um carinho, não pedindo uma atenção, não pedindo um cuidado, não pedindo, não pedindo, não pedindo. Despedindo, apenas.
Era só seu coraçãozinho débil dando um último e definitivo adeus. Um enfarte talvez a tenha levado. Vai saber! Nem mesmo será feito um laudo ou uma autópsia, pois os cães não têm esse direito humano, conferido a sequestradores, safados, traficantes, empresários, políticos e toda espécie de bandidos. Nunca aos cães e às cadelas.  Mocinhas ou bandidas.
E, você, sua bandidinha, achou o jeito certo de ser gostada. No fundo de sua espontaneidade animal e do alto de seus 16 ou 18 respeitáveis anos de experiência canina, sabia como é que se conquista a verdadeira afeição das pessoas. Como uma bandida, invadiu sorrateira, sem ser convidada, o meu coração e me deixou agora tristonho e com saudade.
Você que nas pizzas mensais da Zezé, marcava presença em todos os cantos e em todo o assoalho em que estendia sua preguiçosa presença. Aliás os cantos não eram sua especialidade. Preferia se instalar nos centros dos aposentos, nos corredores e nas entradas das portas. Mas estranhamente, embora sua marcante presença fosse sempre notada, você jamais era enxotada. Porque, assim como as plantas, os retratos e os abajures, você integrava a parte mais prazerosa daquela casa que por acaso acolhia também uma família.
E enquanto tal casa perdurar, você será lembrada cada vez que alguém esquecer de tropeçar ao passar célere da sala para a cozinha ou do banheiro para o quarto, cumprindo os rituais cotidianos sem sentido e, com sua ausência, mais sem graça.
Disseram-me que muitos na vizinhança a conheciam, pois você fora no passado um simples mas querido cão de rua, que prescindia de pedigree para ser por todos estimado.
Carinho e devoção gerais de que você abriu mão, ao aceitar a oferta de receber um lar e uma família acolhedores em troca do abdicar de seu habitat natural das ruas, onde você desfrutava de ampla liberdade. Foi um motivo de honra você ter conferido a exclusividade da sua companhia tão gratificante.
Tchau, Bandida! Do céu dos cachorros onde você deve se encontrar, mande um derradeiro e rouco latido para nos alentar nessa dura missão de viver nosso turbulento dia a dia onde a presença de cães parece não passar de mera frivolidade.  




sábado, 14 de março de 2015

A POBREZA E A NOBREZA


Carrego, dizes, sangue nobre na veia, sou da elite branca. Graças a alguns tostões honestamente conquistados, estou eternamente condenado a não morrer de fome. Triste sina.

Nem por isso ostento galardões burgueses: levo vida modesta, despojada, não trajo roupas de grife, só uso transporte público ao lado dos mais pobres (e dos menos pobres) do que eu. Se alguma nobreza cultivo é a de princípios.

Já tu, nobre companheiro, gabas-te de ter a pobreza do teu lado. Não apenas a dos pobres de recursos, mas a dos pobres de espírito, a dos pobres de convicções, a dos pobres de anseios. Esses (carentes que são também de pensamento e de discernimento) são os que hoje te seguem.

Pelos trocados que lhes repassas (subsídios, assistencialismos, auxílios, benefícios, bolsas), formam uma legião que blinda o poder de que te apoderares. É o preço a pagar, não do teu bolso, mas com dinheiro público (tanto de ricos quanto de pobres) de que indecentemente te apropriaste, para a ti manterem-se fieis. É isso que te torna desgraçadamente POBRE, na mais completa acepção do termo. E que te permite, mesmo rodeado de “pobres coitados”, levar uma vida nababesca, distanciada de gente pobre, maltrapilha. Um “pobre” magnata.

O pior dos pobres, o pobre de fachada, aquele que, a despeito de seu discurso igualitário, só freqüenta shoppings de luxo, hotéis cinco estrelas, restaurantes caros e hospitais de referência utilizados pelos mesmos milionários que finges hostilizar, proferindo bravatas demagógicas, num burlesco jogo de cena. Que pobreza moral! Nessa patética jornada, acompanham-te congressistas, pastores, astros esportivos, duplas sertanejas, apresentadores de TV, traficantes de drogas e advogados de bandidos. Todos que, sendo, em essência, indigentes, amealham fortunas, venerados e elevados ao ápice por muitos outros pobres.

Carregas modestos milhões de dólares. E (com eles) faturas míseros milhões de votos. Jamais poderia eu, com meus estritos princípios e minha rude sinceridade, concorrer contigo numa eleição, turbinado que és pela aparatosa falsidade, pela faustosa mentira e pelo ostentoso apelo fácil que arrebata multidões de pobres, de todas as classes. Pobre de mim...

E penso com meus pobres botões: de que vale ganhar o poder nas urnas se esse sistema pobre (e podre) que aí está é para beneficiar apenas os pobres de caráter.

Fica com teu pobre poder. Eu fico com a minha rica liberdade. Usarei da minha liberdade para te criticar e usarás do teu poder para me calar. Talvez um dia consigas fazê-lo, apoiado pelo exército radical armado de pobres que estás arregimentando, tal como fizeram Hitler, Stalin e Robespierre.

Podes ficar com teus juristas e teus políticos servis e com os milhões de “pobres diabos” por eles enganados e usufruas das benesses do poder a que te apegas, como um pobre a um prato de comida.

Eu ficarei com os que pensam, os que sentem, os que criticam, os indignados, os inconformados, os justos, os incorruptíveis, os estudiosos, os sensíveis, os artistas, os altruístas, os idealistas, os humanistas, os ambientalistas, os socialistas (genuínos), aqueles que (sendo pobres ou ricos) não se deixam enganar por falsos pobres.

Não falo de endinheirados, mas de diferenciados. Aqueles cuja exuberância de ideias, criações e atitudes fizeram a vida menos pobre para todos. São poucos, não elegeriam sequer um vereador, mas sem precisar titular nenhum político, estão sempre tornando mais rico o destino de burgueses e plebeus.

Tu ficas com as massas, eu fico com a nata. Tu, empavonado, ostentas um rebanho de bois; eu, humilde, me galhardeio com as ovelhas negras. Comandas os obedientes, os homogêneos, os monocórdios. Eu avoco os contestadores, os libertários, os criativos. Esbanjas a quantidade. Eu louvo a qualidade.

Dinheiro não é a questão. Pois nada é mais parecido com uma horda de pobres imbecis do que uma horda de ricos idiotas. Esses votam nos corruptos de direita, enquanto aqueles elegem os corruptos de esquerda. E por ambos os lados somos democraticamente espoliados. Isso faz a verdadeira penúria desse país miserável, onde possuídos e despossuídos são igualmente “pobres”.

Podes bradar que sou elitista e eu te responderei sem falsos pudores: POBRE !!!




domingo, 25 de janeiro de 2015

O AVIÃOZINHO


Essa crônica a jato é para homenagear o aviãozinho do ‘plano de voo’ que apresenta esquematicamente, durante as maçantes e intermináveis viagens aéreas, um rosário de informações como velocidade, altitude, distâncias etc.

Doce alegria acompanhar as peripécias e travessuras da­quele tosco modelinho, que protagoniza um enredo arrastado, em meio a um cenário de mapas e números. Entretém-me por horas, mostrando, orgulhoso, suas conquistas e façanhas.

O aviãozinho procura disfarçar sua tristeza ante a in­diferença solene dos passageiros, principalmente a de crianças desinfantilizadas, sedentas por ingressar rápido no mundo de responsabilidades, hipocrisia, corrupção e bebidas.

Desdobra-se a navezinha em cumprir seu papel de impressionar os espectadores sobre quantas milhas percor­reu, quão alto consegue subir e quanto frio consegue enfren­tar.

Mas imagino que a frieza atroz que o martiriza provém do desprezo das pessoas que, por não saberem mais brincar, não dão a devida atenção ao irrequieto entusiasmo infantil daquele “patético” figurante, largado à infindável chatice de dados aeronáuticos.

Encena seu papel briosamente, como o de um palhaço sem graça que dá toda sua energia tentando er­guer o ânimo da desatenta plateia, entre dois números de ma­labarismo. O audaz aviãozinho não se entrega ao desalento.

Quadro a quadro, fico esperando ansioso rolar a sequência completa de informações inúteis para vê-lo ressurgir altaneiro e peralta na tela anunciando quantos quilômetros conseguiu galgar na rodada, reduzindo bravamente o incômodo pela penosa espera.

O coitadinho nunca deixa a bola cair, sempre atualizan­do os dados, até o aguardado fim da viagem, quando a apre­sentação da peça chega melancólica ao seu desfecho.

Todos abandonam, sem saudade, seus assentos na plateia e deixam a adormecida aeronave aos atropelos, de volta ao seu habi­tat, no solo.

As cortinas nem chegam a se fechar. Sem que se aperceba, a projeção simplesmente se interrompe. Ninguém pede bis. Fico ali, absorto, esperando em vão meu ídolo voltar ao palco para agradecer. As luzes da tela abruptamente se apagam e o palhacinho é ar­rancado de cena.

A expressão ‘plano de voo’, conferida ao ‘enredo’ apresentado durante a viagem parece querer suprimir a candura intrínseca àquele objetinho inocente, inserindo-o no universo gráfico corporativo e otimizador dos executivos.

Ao invés de um plano cartesiano contendo uma de­monstração cartográfica elaborada por experts em aviação comercial, vejo na projeção apenas um aviãozinho bonitinho galgar solto o espaço.

Com desenvoltura, lá vai ele, altivo, atraves­sando a floresta amazônica com o mesmo ímpeto com que cruza oceanos, desertos, cordilheiras, planícies, civilizações. Imbatível explorador, dentro de um universo mágico, rumo ao ponto de chegada, talvez a Terra do Nunca.

Se os administradores das companhias de aviação soubessem dessa concepção ‘gaiata’ de imediato seria o aviãozinho com toda sua parafernália proscrito da tela e substituído por grá­ficos de desempenho de commoditties, diagramas de evolução das bolsas asiáticas ou por uma figura mais inumana dotada de merchandising aéreo, sendo remodelado por um design arrojado, retilíneo e futurista.

Até lá, enquanto concepções inocentes subsistem à margem do sistema, terei direito de conservar, a dez mil metros do chão, minha imaginação nas nuvens.

A cada girada, novos números: velocidade, altitude, temperatura, distância, horário, quilômetros, milhas, pés, graus Celsius, Farenheit e um punhado aleatório de cidades de relevâncias distintas que parecem estar umas sobre as ou­tras num mapa rudimentar e impreciso, onde Belo Horizonte fica ao lado de Aracaju e Miami é subúrbio de Nova York.

Quem vê aquela figurinha dócil, mal consegue rela­cioná-lo ao monstro metálico dotado de avançados recursos tecnológicos, em que respeitosamente adentráramos, intimidados ante sua imponência técnica e cujo interior inóspito e claustrofóbico mostrara um movimento frenético de pessoas abrindo desa­jeitadamente compartimentos, guardando febrilmente valises e trocando sorrisos forçados de apreensão e cumplicidade.

Passageiros apressados e sisudos, querendo cumprir suas inexoráveis jornadas para dar célere continuidade a suas vidas insípidas, fechar negócios oblíquos, transportar muam­bas, visitar lojas de grifes, postar selfies com cé­lebres monumentos ao fundo, visitar corredores de museus cujas valiosas obras de arte permanecerão no esque­cimento. Um vai e vem repetitivo e improfícuo.

E o aviãozinho da tela alça voo sobrepondo-se a esse sem sentido mundo dos homens a que tenazmente serve. 
  


Texto extraído do livro “O QUE DE MIM SOU EU”