quinta-feira, 10 de junho de 2021

FORÇAS AMADAS

 

“Ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo o canhão” Geraldo Vandré

Os recentes episódios envolvendo a quebra de disciplina no Exército, além de escancarar a humilhante capitulação de respeitáveis homens estrelados a um inculto capitão manipulador com arroubos totalitários, trouxeram à tona questionamentos acerca do papel na sociedade dessa milenar instituição que deveria estar a serviço do Estado e da coletividade, não do presidente de plantão.

À parte as complexas relações dos militares com o poder, a serem abordadas por analistas políticos e sociólogos de botequim, trago minha humilde visão, digamos, poética. Iniciando com uma indagação crucial: precisamos mesmo de forças armadas? Antes que queiram me internar num hospício ou me inscrever na “sociedade de poetas mortos” (e desaparecidos), levanto algumas ponderações em defesa de minha atrevida proposição.

Começo pelos gastos pornográficos. Os recursos destinados pelas nações na compra de armas e na manutenção dos contingentes das três forças certamente seriam suficientes para debelar a fome e a miséria do mundo, permitindo a todos uma vida mais digna e feliz. Não fosse por outra razão, essa já bastaria para que passemos a refletir mais seriamente sobre a pertinência da questão. Países como o Japão, a Islândia e a Costa Rica são desprovidos de forças armadas e nem por isso foram escravizados por outras nações.

A tese da extinção do aparato militar é desqualificada pelo ‘irrefutável’ argumento de que serve para garantir “a incolumidade das fronteiras”, “a inviolabilidade do território” e todo aquele papo ufanista que estamos cansados de escutar para justificar que se torre o dinheiro arrancado da nossa labuta para manutenção dessa estrutura mastodôntica e arcaica que, convenhamos, em nada contribui para o aperfeiçoamento de nossa vida social.

Acredito que os seres humanos com sua tenaz criatividade, estejam aptos a conceber mecanismos jurídicos e institucionais para assegurar uma vida comunitária próspera a todos seus iguais sem precisar recorrer a esse estorvo que permanentemente mantém sobre nossas cabeças uma ameaçadora espada de Dâmocles. Não é um contrassenso que, para conservar a paz, necessitemos da proteção de forças de guerra?

Por externar tais ideias, já devem estar me querendo enquadrar na Lei de Segurança Nacional por apologia comunista, não se explicando por que países com regimes de esquerda exaltam, até com maior ênfase, suas gloriosas tropas terrestres, aeronáuticas e marinhas e exibem, orgulhosos, seu arsenal bélico. De fato, parece que, acima de questões doutrinárias, governos de todos os matizes ideológicos se unem em saudar suas bravas “forças armadas”.

A expressão “forças armadas” nunca deixa de vir acompanhada de predicados como “triunfantes”, “honradas”, “patriotas” e outras adjetivações retumbantes que escamoteiam um sentimento latente de pavor, resquício dos tempos em que os “honoráveis” homens de farda comandavam sem pruridos morais tenebrosas sessões de tortura nas masmorras da ditadura.

Personalidades das mais diversas funções como políticos, magistrados, jornalistas, empresários, policiais são alvo constante de difamações. Até mesmo professores, médicos e sacerdotes não escapam do julgamento implacável da opinião pública. Mas poucos ousam, em público, ferir o brio dos sacrossantos senhores das armas. Ao falar de militares, todos se borram nas calças.

A par do fato de que militares (não todos) prezam valores nobres como a honra e a honestidade, a verdade é que constituem uma classe que onera muito mais a sociedade do que dá em troca. Num mundo onde prevalecesse a fraternidade e o humanismo, pouco ou nada teriam a colaborar com suas estapafúrdias ideias de complôs e teorias da conspiração para justificar sua imprescindibilidade e garantir a reverenciosa deferência dos cidadãos de bem.

Sabemos que, em boa parte das nações, sobretudo as mais atrasadas que não possuem instituições sólidas, os militares, não satisfeitos com sua posição proeminente perante a comunidade, intrometem-se em assuntos que não lhes dizem respeito. Isso quando não impõem regimes de terror. Embora só lhes coubesse agir em caso de ameaça externa, usam seus efetivos para coibir e intimidar a população civil. Valem-se da exclusiva prerrogativa de força e de suas baionetas para reprimir compatriotas desarmados que deveriam proteger. Não atuam para resguardar o país de ataques estrangeiros mas para blindar governantes autocratas que almejam perpetuar-se no poder. Em troca de sua subserviência, acumulam regalias e recebem benesses.

Por aqui, chegaram ao cúmulo de ocupar, durante a pandemia, a pasta da Saúde sem ter as mínimas qualificações para tal, a não ser submeter-se servilmente ao comandante-em-chefe que, indiferente à tragédia sanitária, esbaldava-se em passeios de moto e jet ski. As centenas de milhares de mortes foram friamente computadas pelas autoridades espartanas como meras baixas da batalha para resguardar a economia e proteger os negócios.

Já que não há nada que possamos fazer, resta-nos sonhar: que tal substituir as temidas FORÇAS ARMADAS, que se impõem pela autoridade, respeito e disciplina, por FORÇAS AMADAS, um exército de pessoas do bem que promovem ações de solidariedade, auxílio e amparo. Que se sobressaiam, não pelo poder de suas “armas”, mas pelo valor de suas “almas”? Ao invés de fardas verde-oliva recheadas de medalhas a celebrar o número de mortes impingidas ao inimigo, usariam despojadas vestes multicoloridas que externam a atuação em prol da vida.

Num mundo ideal, onde fossem abolidos as fronteiras, a opressão e os privilégios, os militares não fariam falta. Todos seríamos civis. Ou melhor, cidadãos. Ou melhor, humanos. Ou melhor, irmãos uns dos outros.