terça-feira, 21 de novembro de 2023

GUERRA E BARBÁRIE


 A guerra israelo-palestino em curso vem despertando paixões. Observa-se que, de maneira geral, quem se encontra mais à direita no espectro ideológico assume a defesa de Israel e quem se afina com a esquerda tem simpatia pelo lado palestino.

Nesse contexto polarizado, sobrou pouco espaço para a análise isenta (se é que seja ela possível). Abro mão de me pronunciar sobre quem está com a razão. A única certeza sobre a qual cravo minha opinião é que é que é preciso encontrar urgente um caminho que leve à paz. Os dois lados têm em seu passivo a morte de civis inocentes, seja de reféns ou vítimas de bombardeios indiscriminados.

O que me leva a dar um pitaco nessa confusão é relativizar a visão simplista que muitos têm sobre conflito, sob uma perspectiva histórica.

Israel é tido como ponta de lança do sistema capitalista, uma sociedade adiantada e moderna, uma ‘democracia’ nos moldes ocidentais, encravado em meio aos ‘bárbaros’ muçulmanos que possuem governos autoritários e até teocracias adjetivadas de medievais.

Segundo esse estereótipo, cada cidadão nascido em Israel é um lídimo representante do mundo civilizado tal qual um europeu ou um norte-americano, dispondo de condições socioeconômicas dignas de Primeiro Mundo. Em contraste, os indivíduos que se amontoam na faixa de Gaza e na Cisjordânia sobrevivem em precárias condições sociais equiparadas às populações mais carentes do planeta, apinhadas na África, na Ásia e na América Latina, predestinadas a levar uma vida miserável, sem perspectivas.

 As imagens que assistimos nos telejornais confirmam esse clichê. Pelas avenidas limpas e bem iluminadas de Tel Aviv ou Haifa, são entrevistados cidadãos israelenses polidos e bem apessoados que manifestam temor de frequentar shopping centers, visitar parentes ou ir a festas rave sob risco de toparem com um foguete caseiro perdido ou um desesperado homem bomba, disposto a oferecer sua vida para levar junto a de um inimigo opressor.

Em contraste, as ruas (se é que podemos assim nomeá-las) sombrias de Gaza apresentam bem menos glamour. São pilhas de escombros cercadas de sangue e fumaça, com pessoas desesperadas correndo a esmo, hospitais onde se aglomeram seres aflitos. Um mundo dilacerado em frangalhos que nos remete à Guernica de Picasso.

A desigualdade entre esses dois cenários chancela uma matemática perversa, segundo a qual a vida de cada humano israelense vale tanto quanto a vida de 10 ou mais ‘sub-humanos’ palestinos. Segundo essa concepção bizarra em que alguns importam mais do que outros, para cada ‘bom moço’ israelense que teve sua vida ceifada, é preciso eliminar pelo menos 10 palestinos, representantes da ‘escória’ da humanidade que só faz encher o planeta com sua prole de famintos desmilinguidos.

Se a ação do Hamas matou 1200 ou 1400 ‘cidadãos de bem’ de Israel com boa formação, é preciso responder à altura extirpando ao menos dez vezes esse número de árabes ‘selvagens’ para fazer justiça e restaurar o equilíbrio. Esse cálculo certamente está presente na mente de boa parte daqueles que apoiam a brutal ação retaliatória do exército israelense empreendida por Netanyahu e seus amigos fundamentalistas que pretendem, com a ajuda dos EUA, “dar uma lição exemplar” nos palestinos, enviando o maior número possível deles para a companhia de Allah, não importa se, entre eles, haja crianças, idosos, todos com sua parcela de culpa no ato insano do Hamas.

Independente de qual dos lados tenha razão, a Guerra no Oriente Médio escancara o embate entre essas duas categorias de gente. Por um lado, o sofisticado aparato militar com bombas e mísseis de última geração colocados na defesa dos valores progressistas do Ocidente e, de outro, miseráveis seres incultos do Terceiro Mundo abandonados à própria sorte que insistem em continuar vivendo sem um lar e uma pátria.

Enquanto os israelenses são tidos como vítimas, sobreviventes do holocausto, que querem unicamente levar uma existência pacata, os palestinos são vistos como terroristas em potencial. Em nenhum momento, são encarados como ‘povo’ ou ‘nação’ detentores de direitos, mas como criaturas congenitamente violentas cujo único objetivo é apagar Israel do mapa.

Os mesmos que repudiam com veemência o antissemitismo fazem vistas grossas ao racismo, à xenofobia e à islamofobia.

O atual embate do Oriente Médio é claramente um desdobramento da luta colonial que o mundo dito desenvolvido (simbolizando a civilização judaico-cristã) trava contra os povos oprimidos (em que se insere a escravidão e a destruição das culturas que professavam credos diferentes). Muçulmanos, hindus, budistas, religiões de matriz africana, povos originários e até ateus são encarados como inferiores. Com o apoio entusiasmado e participação ativa dos evangélicos, todos esses rudes pagãos devem ser devidamente catequizados... ou eliminados.

O Islamismo foi vítima desse processo, tendo sucumbido ao poder bélico dos cruzadistas que tinham por objetivo extirpar militarmente os ‘infiéis’ para expandir a palavra da Bíblia, na esteira dos interesses do capital comercial.

Se hoje é associada a práticas arcaicas, a civilização islâmica viveu há alguns séculos momentos de glória e esplendor, em que floresciam as artes e as ciências, sendo transferidos para nossa cultura conhecimentos de matemática, astronomia, física, química, medicina, arquitetura, agricultura, filosofia etc. Espanha e Portugal beneficiaram-se largamente desse legado, tanto que despontaram da ocupação moura como os países mais adiantados do continente europeu.

Em oposição ao estigma que os acompanha, os muçulmanos à época eram pacíficos e bastante benevolentes com cristãos e judeus, não havendo registros significantes de violência contra os que, sob seu domínio, professavam credos diferentes.

Ao contrário, a expansão do cristianismo foi acompanhada de intolerância e violenta repressão. Aqui mesmo na América Latina, tivemos exemplos do furor belicista dos espanhóis que para pilhar seus metais preciosos, devastaram organizações sociais milenares como a de incas, maias e astecas deixando um rastro de sangue e escombros. O Brasil não teve melhor sorte: o domínio imposto pelos portugueses com ajuda dos ingleses quase dizimou os milhões de indígenas que há milênios viviam aqui em comunhão com a natureza.

Assim como ocorreu na Europa e nos EUA e agora em Israel, a construção de uma sociedade judaico-cristã, branca, capitalista, neoliberal que reverenciamos como “civilizada” esconde uma trajetória de horror, aniquilação e destruição de modos de vida alternativos que hipocritamente chamamos de “primitivos”.