quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

ORDEM, PROGRESSO E ... AMOR


O amor vem por princípio, a ordem por base/O progresso é que deve vir por fim/Desprezastes esta lei de Auguste Comte/E fostes ser feliz longe de mim” (POSITIVISMO, Noel Rosa e Orestes Barbosa)

Bandeiras são símbolos que remetem à identidade de uma nação. Constituem-se em autênticas obras de arte por sintetizarem os valores de um povo usando apenas tonalidades e elementos gráficos ou temáticos sobre um fundo retangular.

Aqueles que conceberam a bandeira brasileira em seu formato atual, entretanto, deliberaram que as cores (o verde das matas, o amarelo do ouro e o azul dos céus) e demais configurações (o losango, a esfera e as estrelas representando as unidades da federação) eram insuficientes para expressar os preceitos almejados e resolveram encaixar também uma faixa branca contendo a divisa ‘ORDEM E PROGRESSO’.

Ideia de jerico! Bandeiras não deveriam conter palavra nenhuma, tanto que são raríssimos os exemplos de países que apõem dizeres em seu símbolo máximo. Apenas uma ou outra traz uma epígrafe em latim e, no caso de países árabes em que o islamismo está arraigado na vida social e política, algumas trazem a inscrição “Allahu Akbar” (“Deus é Grande”).

Ao contrário de símbolos e cores (que compõem uma representação visual) que são atemporais, palavras de exortação, ainda mais expressas no idioma nativo que estrangeiros não entendem, envelhecem com o tempo. Refletem o ‘zeitgeist’ (espírito da época), o conjunto de valores prevalecentes no início da República (fim do século XIX). Tal qual as ideias que exprimem, tornam-se anacrônicas.

Além do mais, os termos ‘Ordem’ e ‘Progresso’ evocam os tristes tempos da ditadura. São palavras datadas que traduzem o ambiente das casernas e refletem os tópicos prioritários concebidos pelos militares para um governo ideal: implantar ‘ordem’ para impedir manifestações divergentes, tachadas de ‘subversivas’ (‘desordem’) e enaltecer o ‘progresso’ a qualquer preço, atropelando outras metas como equidade, justiça, bem estar social e preservação ambiental.

Particularmente, prefiro ‘Solidariedade’, ‘Humanismo’, ‘Harmonia’ e ‘Paz’. O lema da Revolução Francesa, ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’ também é inspirador. Outros elegeriam ‘Deus, Pátria e Família’ (Deus me livre!) ou, quem sabe, ‘Ame-o ou Deixe-o’. Não, o melhor mesmo é não ter palavra nenhuma e permitir que a mudez da bandeira fale por si.

Ao que consta, a inscrição ORDEM E PROGRESSO foi inspirada na doutrina positivista que fazia a cabeça daqueles que conduziram o processo que culminou com a proclamação da República, em especial a elite das Forças Armadas. A expressão decorre de uma famosa citação de Auguste Comte: “O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim”.

Mas, pera lá! O lema de Comte contemplava uma tríade composta por: ORDEM, PROGRESSO e AMOR. Só que os doutos que conceberam nossa bandeira houveram por bem amputar o vocábulo AMOR. Não há registros das razões que os levaram a abolir o sustentáculo que amparava a totalidade do pensamento do filósofo, tornando manco o tripé que inspirou sua citação.

Pelo que imagino, os iluminados militares avaliaram que AMOR era ‘coisa de boiola’, não fica bem destacar-se no símbolo pátrio, não combina com a ideia de orgulho cívico e virilidade que desejavam transmitir. Atravessávamos um período de rupturas com o fim do império e da escravidão. Melhor preparar a população para o enfrentamento do que para a conciliação. Não teria sido uma boa recomendação incentivar um sentimento que levasse à fraternidade, à união entre as pessoas e à extinção do confronto que sempre inspirou a casta castrense. Assim, o amor foi mutilado da nossa bandeira.

Segundo minha interpretação pessoal da máxima ‘comtiana’, a Ordem deve estar subjacente ao contexto social vigente e o Progresso significa o desenvolvimento material decorrente. Porém é o amor que deve nortear todas as ações. Sem ele, a sociedade deriva para um contexto sem ética e descamba para uma situação de desarmonia social.

Acho que a supressão do amor explica muito da mentalidade que forjou aqueles que se arvoram em defender nossa pátria. É como se tivessem extraído a alma do nosso povo e semeado o desamor.

Num contexto em que a bandeira brasileira, guiada pela Ordem e pelo Progresso (mas não pelo Amor) foi apropriada por um grupo político e utilizada em movimentos golpistas, talvez pudéssemos resgatar a frase original do pensador francês para nos guiar nesses tempos de ódio e polarização.

Não se trata de uma mudança fortuita ou oportunista, mas uma demanda necessária para expiar o pecado original que tantos males vêm provocando. Já que utilizaram a bandeira para divulgar um pensamento nobre, ao menos recuperem sua integralidade.

Se existe um sentimento que está faltando hoje em nosso país é justamente o amor. “Só agora no século XXI é que podemos ter uma ideia melhor da importância dessa palavra como catalisadora de misericórdia, de caridade, de solidariedade entre as pessoas”, disse Eduardo Suplicy (Fonte: Agência Senado) que, quando senador, lutou sem êxito para emplacar essa pequena, mas tão significativa mudança em nossa bandeira.

 

 

 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

MARCHINHA

“O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o teu amor” (Lamartine Babo, Irmãos Valença)

A marchinha de Carnaval faz parte da história da música brasileira e, por mais surpreendente que pareça, é mais antiga que o samba. Quando Donga registrou sua composição “Pelo Telefone”, oficialmente considerado o primeiro samba da história, a marchinha “Ô Abre Alas” (de 1899), de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga, já contava com 17 anos de idade!

A partir de 1920, o ritmo reinou absoluto no Carnaval por quatro décadas. Apenas a partir da década de 1960 foi destituído nos desfiles das escolas de samba pelo samba-enredo. Mais recentemente, perdeu espaço também nos blocos de rua para o axé e canções descartáveis que mal duram até a próxima estação.

Permanece, todavia, com suas letras insolentes, divertidas e de fácil memorização, na lembrança de todos. Traduz o espírito brincalhão do nosso povo. "A marchinha é um gênero marcado pela crônica de época e pela malícia", diz o musicólogo Ricardo Cravo Albin, autor do famoso dicionário musical que leva seu nome.

Devido a suas características desaforadas, as marchinhas passaram a ser alvo da intolerância decorrente da onda do politicamente correto que tem assolado nossa cultura. Outrora consideradas ingênuas, agora vêm sendo banidas do repertório de diversos blocos carnavalescos para não ferir o brio de grupos que se sentem oprimidos.

Rodrigo Faour, pesquisador da MPB, desaprova: “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje, mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativa”. O renomado antropólogo Roberto DaMatta acrescenta não ter sentido os organizadores dos blocos alegarem que as músicas são discriminatórias: “A maneira de pensar era diferente”.

Algumas mais recentes trazem conotação sexual e de fato são um tanto preconceituosas, como é o caso de “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão” e “A Pipa do Vovô”, disseminadas por Chacrinha e Sílvio Santos.

O problema é que a perseguição extravasou esse nicho de apresentadores televisivos capciosos e respingou em compositores tradicionais como Haroldo Lobo, Braguinha, Ary Barroso e Noel Rosa, nomes emblemáticos da cultura nacional, alcançados pelo crivo jacobinista destinado a expurgar da arte de qualquer ranço de irreverência, numa cruzada moralizadora semelhante à dos tempos do AI-5.

Sob acusação de racismo, foram alvos centenas de canções que se referiam a ‘mulata’, palavra presumidamente derivada de ‘mula’. Essa interpretação depreciativa não é consensual, havendo uma corrente que sustenta que o vocábulo deriva do árabe ‘mowallad’ (filho de pai árabe com mãe de outra etnia).

Seja como for, é lícito extirpar da linguagem um termo popularizado, sabendo-se que seu reiterado uso coloquial consagrou uma nova conotação sem qualquer vínculo com a raiz etimológica hipoteticamente espúria?

O cronista Ruy Castro assim se manifesta: “Das dezenas de marchas que falam da ‘mulata’, muitas foram compostas por Assis Valente, Wilson Baptista, Haroldo Lobo, Zé e Zilda, Haroldo Barbosa, Monsueto etc. etc., e lançadas por cantores como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida, Carmen Costa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Jorge Veiga, Ângela Maria etc. etc. Todos mulatos. E não viam nenhum problema nisso.”

Nem o insuspeito Caetano Veloso escapou de constar no Index Prohibitorum por referir-se em sua música “Tropicália” aos “olhos verdes da mulata”.

Mas a principal vítima da cruzada foi a consagrada “O Teu Cabelo Não Nega”, a mais famosa composição de Lamartine Babo, eleita pela Revista Veja a terceira maior marchinha de todos os tempos.

Além do uso da condenada palavra ‘mulata’, os atentos patrulheiros revisionistas se fixaram no verso “mas como a cor não pega” (em que ‘pega’ teria o sentido de transmitir a ‘maldição’ da cor negra). O jornalista Tárik de Souza, um dos maiores estudiosos da nossa música, rebate alegando que o ‘pega’ em questão mais possivelmente significaria ‘importa’, o que conferiria ao verso uma acepção antirracista, ao contrário do que propalam seus críticos. De fato, não parece razoável supor que, com seu fino humor, Lamartine externasse receio de ser ‘contaminado’ pela cor da mulata que tanto exaltava.

Um país tão pobre de referências culturais não pode se dar ao luxo de submeter seus ídolos consagrados a práticas inquisitoriais, sob o discutível pretexto de reparar eventuais injustiças históricas.

“A volta da censura, mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural”, arremata Tárik.

Longa vida à marchinha!

  

(Adaptado do meu original MARCHA À RÉ, publicado em fevereiro de 2021)

domingo, 12 de fevereiro de 2023

DESORGULHO NACIONAL

O que têm em comum o time do Flamengo, a premiação do Oscar e a cantora Anitta? Elementar, caro Watson! Os três remetem-nos a eventos recentes que atestam a crescente perda de brilho do Brasil. Aquele que nos foi vendido como o país do futuro, cada vez mais vive das glórias do passado.

Comecemos com o mais improvável: a queda do Mengão. A imponente equipe de Gabigol tomou uma entortada homérica de um time de beduínos e deu um melancólico adeus antecipado ao devaneio do título do mundial de clubes. Poupou-se ao menos de tomar uma chacoalhada ainda mais contundente do portentoso Real Madrid na final.

O fiasco veio na esteira da não menos humilhante desclassificação na Copa Mundial da favorita seleção verde-amarelo para a opaca equipe da Croácia, configurando a visível derrocada do outrora glorioso futebol canarinho que tanta notoriedade nos trouxe. Formada por fanfarrões megalomaníacos de caráter duvidoso, a atual casta de jogadores comandada por Neymar não deixará saudade.

Passando para o extremo oposto, a lista de concorrentes para o Oscar 2023 reitera o já esperado fracasso do cinema nacional em aspirar alguma indicação ao prêmio. Como sói acontecer ano após ano, o cinema de Glauber Rocha, Walter Salles, Fernando Meirelles, José Padilha e Kleber Mendonça Filho é incapaz de ganhar a estatuetazinha e quebrar o jejum que já se perpetua desde o início da celebração.

A humilhação torna-se ainda mais eloquente se considerarmos que nosso eterno rival, a Argentina, acumulou, desde a virada do século, nada menos do que quatro indicações ao prêmio de melhor longa estrangeiro: “O Filho da Noiva”, “Segredo dos Seus Olhos” (vitoriosa), “Relatos Selvagens” e “Argentina 1985”, todas estreladas pelo indispensável Ricardo Darín. O México não deixou por menos, com cinco indicações: “Amores Brutos”, “O Crime do Padre Amaro”, “O Labirinto do Fauno”, “Biutiful” e “Roma” (vencedor). Outros países do continente como Chile, Colômbia e Peru, não ficaram ausentes.

E o Brasil, o mais importante país da América Latina? Nada. Nenhuma mísera mençãozinha nesse período de mais de 20 anos. Uma vergonha! Enquanto os cineastas estão à míngua, demonizados por pleitear melhores condições de trabalho, o país sofreu um desmonte cultural sem precedentes.

Somada às frustrações futebolísticas e cinematográficas, advém também agora a derrota no campo musical. A badaladíssima Anitta, derradeira esperança de conseguir o Grammy na categoria de Artista Revelação, foi superada pela desconhecida Samara Joy, frustrando dezenas de milhões de fãs que, inconformados, acorreram às redes sociais e invadiram o site da discreta intérprete americana bradando impropérios com ameaças contra a vencedora, conforme decisão do júri. “Quem essa gringa metida pensa que é para desbancar do pedestal a rainha do Spotify?” A baixaria foi uma derrota adicional para a imagem do país. O outrora pacífico e cordial povo brasileiro protagonizou a mesma ladainha lamuriante dos ‘atos patrióticos’, que parece estar se tornando moda, de querer mudar no grito o resultado legítimo de uma votação.

A traumática dessacralização da deusa da sensualidade empanou o fato de que havia outros dois brasileiros na competição. A consagrada cantora Flora Purim com uma brilhante carreira consolidada no mercado americano que, aos 80 anos, concorreu no quesito Álbum de Jazz Latino. E o saudoso conjunto Boca Livre, concorrente - e vencedor!!! - como melhor Álbum de Pop Latino por “Pasieros”, gravado em 2011 ao lado do cantor panamenho Rubén Blades. Foi uma honraria póstuma visto que o grupo se dissolveu, mais uma das vítimas da estúpida polarização política que martirizou o país nos últimos anos. A façanha insere o grupo carioca no seleto “clube” de músicos brasileiros ganhadores do Grammy Awards, composto por Laurindo Almeida, Astrud Gilberto, João Gilberto, Eumir Deodato, Sérgio Mendes, Tom Jobim, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Eliane Elias.

Difícil imaginar ingressando nesse time de cobrões uma funkeira carioca cuja maior virtude é se esfregar no parceiro artístico e emitir guinchos lancinantes. Verdade seja dita, Anitta tem algumas evidentes qualidades, além da sua formosa bunda. Mostrou-se uma pessoa engajada nos problemas do país e com preocupações ambientais. Do ponto de vista musical, todavia, suas estrepolias luxuriantes não a gabaritam a voos mais altos.

Cabem algumas considerações. Em primeiro lugar, a de relativizar a importância do Grammy. Apesar de todo auê em torno da cerimônia, o resultado da premiação fica longe de espelhar a excelência do meio musical. Assim como o Oscar, é uma oferenda criada pela indústria de entretenimento para ajudar artistas norte-americanos a alavancar suas carreiras e faturar mais grana com o aval de supostos críticos.

Muitos vencedores nem se deram ao trabalho de comparecer à cerimônia brega de entrega do gramofonezinho dourado. Artistas de importância inestimável como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Diana Ross, Jackson 5, Bob Marley, The Who, Doors, Patty Smith, Iggy Pop, Velvet Underground, Queen e Björk não foram considerados bons o bastante para receber o diferimento pelos iluminados promotores do evento. Enquanto isso, a cantora Beyoncé faturou nada menos do que 32 vezes! Um evidente exagero, totalmente desproporcional, não obstante seus indiscutíveis atributos vocais e corporais.

É até um alento que o prêmio de revelação fosse conferido a uma jovem cantora de jazz que não precisa expor os glúteos em trajes eróticos para cativar seus ouvintes, já que essa categoria não costuma coroar artistas desse gênero, digamos, requintado. A condecoração possibilitou a inúmeras pessoas, inclusive esse que vos escreve, tivessem oportunidade de conhecer a doce voz de Samara que, longe do pop descartável, tem como referência musas do quilate de Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.

O país que conquistou o planeta com o doce balanço da bossa nova, agora cai na real que precisa voltar a produzir música decente (em seu sentido mais abrangente) para pleitear prêmios notáveis. O cenário musical no país aliás atravessa tempos lastimáveis, dominado pela música sertaneja, gênero insosso que não consegue emplacar nem mesmo em países vizinhos.

Assim como a geração de futebolistas, a presente safra de celebridades nacionais não será capaz de tirar o país do limbo.

 

 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

SAMBA


O samba ainda vai nascer, o samba ainda não chegou (Caetano, Desde que o Samba é Samba)

O calvário a que foi submetido o cantor Seu Jorge para conseguir registrar o filho com seu nome predileto merece algumas reflexões. Ao que consta, ao oficial de plantão no cartório paulista, encarregado de atender a demanda do músico e sua companheira Karina, desagradou o nome ‘SAMBA’, proposto pelo requerente, por se tratar, segundo alegou, de um ‘ritmo musical’. Recorreu então à prerrogativa a ele conferida pelo artigo 55 da Lei 6015 de 1973, segundo o qual “o oficial de registro civil não registrará nomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores”.

A ampla divulgação do caso pela imprensa e a decorrente intromissão de especialistas e fofoqueiros, sempre prontos a reverberar nas redes sociais qualquer detalhe da vida dos ‘famosos’, acabaram por expor a figura do pequeno Samba que, nem mesmo veio ao mundo, já se viu enredado num imbróglio jurídico.

A confusão, aliás, surgiu antes mesmo de o garoto vislumbrar a luz do sol pois a intenção do casal já fora aventada meses antes num programa de auditório da Globo, ocasião em que Sambinha ainda se encontrava no ventre da mãe, provocando um quiproquó de internautas elogiando ou criticando a escolha dos pais sobre o singular epíteto selecionado pelo cantor carioca.

A decisão de censurar o Samba foi corroborada pela responsável pelo cartório, Katia Cristina Silencio Possar, que sustentou que o prenome impugnado é ‘incomum’, não constando nenhum registro semelhante na base de dados consultada. Acrescentou a doutora que ao cartório é facultado vetar nomes pejorativos que possam levar crianças a sofrer bullying no futuro.

A nobre causídica, para amparar a negativa de seu subordinado anti-sambista, arrolou dois argumentos distintos como se fossem ‘um samba de uma nota só’. O primeiro é o de não terem sido identificadas inscrições pretéritas com a mesma grafia, afirmação que, por fundamentar-se no inescrutável banco oficial de registros do Estado de SP, torna-se irrefutável. Quanto ao segundo, o de preservar o jovem de eventuais situações vexatórias, a afirmação é no mínimo questionável. ‘Samba’ ainda que seja uma designação insólita, reveste-se de inegável sonoridade e enaltece seu detentor pela singularidade e originalidade. Não há razão para supor que alguém que, porventura venha a adotar essa alcunha, possa ser motivo de chacotas, muito ao contrário. Seu Jorge deveria sim ser admirado pela ousadia, pelo pioneirismo e por valorizar a cultura nacional. Quem sabe, aberto o precedente, em breve teremos uma profusão de Sambas no mercado de nomes. Talvez, inaugurando uma coqueluche, os cartórios sejam invadidos por uma miríade de ritmos musicais a nomear futuros cidadãos respeitáveis, tais como Ilmo. Sr. Bolero e a Exma. Sra. Valsa. Assim como há belos nomes derivados de personagens bíblicos, deuses, anjos e flores, por que não gêneros musicais?

É de se perguntar onde estavam a Sra. Silencio (cujo sobrenome leva a crer que não aprecia que ruídos na comunicação interfiram em suas deliberações) e seu diligente subordinado quando foram batizadas crianças com nomes esdrúxulos como Heliogábalo, Fologênio, Necrotério, Esparadrapo e Frankstefferson?

Se houve no passado essa complacência dos funcionários, baluartes da decência e dos bons costumes, por que agora essa implicância com um marco da cultura nacional? Não fosse um sujeito pacífico, Seu Jorge poderia retrucar o birrento cartorário dizendo: “Meu caro, quem não gosta de samba bom sujeito não é”.

Estaria uma instituição burocrática impessoal mais gabaritada a zelar pela felicidade dos cidadãos que os próprios pais? Tenho certeza de que Seu Jorge e Karina desejam um futuro radiante para seu filho. Que os princípios e a dedicação a ele transmitidos permitam-no enfrentar uma sociedade preconceituosa e racista. Faço votos que o adulto Samba possa ter orgulho não apenas da cor morena de sua pele como do emblemático nome que carrega, ambos afirmações de brasilidade. E tal como diz a famosa canção de Zé Kéti, possa bradar com orgulho: “Eu sou o Samba... quero mostrar ao mundo que tenho valor”.

No entanto, apesar de todas essas ponderações, pode acontecer que, por alguma razão, Samba não se sinta confortável com o nome amorosamente conferido a ele pelos pais. Talvez prefira ser Sam, Sandro, Sandoval, Godofredo ou Hildebrando. Ou, contrariando a predestinação presumida, pode ser que ele venha a se tornar um aficionado metaleiro adotando o cognome Ozzy. Seja feita a vossa vontade. Afinal é o titular da oferenda que deve sentir-se bem com ela. Não é certo carregar um estorvo para o resto da vida e sofrer desajustes emocionais por algo imposto à sua revelia. Para casos assim, a lei possibilita que se proceda alteração quando o indivíduo atingir o discernimento. Questão resolvida!

Essa situação expõe as contradições irreconciliáveis entre aqueles que navegam pelo mundo libertário das artes, plenos de ideias e inquietações e os que passam oito horas diárias atrás de uma escrivaninha batendo carimbos e reconhecendo firmas, representantes legais de uma sociedade conservadora, avessa a excentricidades.

Nomes exóticos de filhos de artistas não constituem casos raros. Muitos músicos escolhem nomes inusuais para seus rebentos como Sheeva, Kryptus, Zabelê, Krishna (filhos Pepeu e Baby do Brasil), Alegria, Preto e Mart’nália (de Martinho da Vila), Moreno (de Caetano Veloso), Mahal (de Luiz Melodia), Preta (de Gilberto Gil), Bena (de Edu Lobo), Amora (de Jorge Mautner), Anelis (de Itamar Assumpção), Vannick (de Belchior), Hope e Phoebe (de Herbert Vianna), Mano Wladimir (de Marisa Monte), Zyon (de Max Cavallera). Até que eu saiba todos se tornaram adultos saudáveis, bem sucedidos e sem traumas.

Irredutível em sua cruzada referente àquele que vai carregar seu DNA e possivelmente herdará uma veia artística, Seu Jorge reuniu com seu advogado sólidos argumentos demonstrando cabalmente que samba é um patrimônio da cultura nacional, orgulho dos brasileiros, enfatizando as raízes etimológicas do termo.

Face à documentação apresentada, à Dra. Silêncio não restou alternativa a não ser rever suas objeções: "Diante das razões apresentadas, que envolvem a preservação de vínculos africanos e de restauração cultural com suas origens, assim como o estudo de caso que mostrou a existência deste nome em outros países, formei meu convencimento pelo registro do nome escolhido, que foi lavrado no dia de hoje", diz a nota oficial. Ufa!

Vida longa ao Samba!