domingo, 29 de maio de 2022

PENA DE VIDA

“Sou a favor da pena de vida, se o sujeito cagou, pisou na bola, tem que resolver aqui, não pode sair fora”          (PENA DE VIDA, Pedro Luís e a Parede)

É assustadora a frequência com que ocorrem nos EUA massacres perpetrados por armas de fogo, com inúmeros mortos e feridos, em especial em escolas, que deveriam ser ambientes seguros de sociabilidade e aprendizado.

Famílias são destroçadas, crianças com toda uma vida pela frente são executadas friamente por razões fúteis.

As motivações para tais atos bárbaros podem ser de várias naturezas: racismo, ódio, terrorismo, paranoia... Mas há um fator que perpassa todos esses trágicos eventos: a facilidade com que os americanos têm acesso a armas de fogo.

É uma chaga americana que explica por que o país mais rico do planeta, o único onde o número de armas supera o de habitantes, é também o mais violento e um dos que têm os maiores índices de criminalidade, campeão nas taxas de homicídios, suicídios e acidentes fatais provocados por esses artefatos bélicos.

E o que mais impressiona é que nada parece indicar que isso vá mudar tão cedo. A indignação que surge logo após a consumação de um desses atos de selvageria não é suficiente para provocar uma mudança e, passada a comoção, o assunto cai no esquecimento.

Por trás dessa situação desalentadora está o lobby exercido pelos poderosos fabricantes de armas sobre os parlamentares do Partido Republicano. Trump durante a sua gestão aparelhou o Poder Judiciário a seu molde, titulando um enorme contingente de juízes, incluindo membros da Suprema Corte, que sistematicamente rejeitam toda iniciativa no sentido de endurecer o acesso dos cidadãos às armas.

A solução que essa turma da bala propõe para as carnificinas é armar os professores e os funcionários das escolas. Poderiam também, quem sabe, permitir que as crianças andassem com pistolas nas mochilas para aumentar sua proteção. Ou seja, o problema causado pela liberação das armas seria resolvido armando mais gente. Cômico se não fosse trágico.

Mas há também um componente ancestral que dificulta a modificação dessa fixação doentia, enraizada na cultura ianque, herdada dos tempos do faroeste, que faz com que ser contra armas represente perda de votos.

Um exemplo pode ser verificado nos filmes policiais ou de ação norte-americanos que inundam nossos cinemas e lares. Havendo um vilão malvado, o enredo quase sempre se livra desse personagem incômodo fazendo com que tome um tiro letal que o tire definitivamente de cena. São raros os casos onde a sorte do malfeitor é determinada por um julgamento onde fique comprovada sua culpa e seja definido seu encarceramento. Seu destino não é resolvido nos tribunais mas por uma pistola justiceira. A mensagem é que, como a justiça não funciona, a solução é que lhe seja metido um balaço na cabeça ou no coração. A ‘sentença’ de pena de morte é definida e aplicada pelos ‘mocinhos’, à revelia dos trâmites processuais.

Através da eliminação física do malfeitor, supõe-se que suas culpas foram expiadas. O espectador pode dormir o sono dos justiçados pois o meliante não voltará a ameaçar a pobre vítima nem abalar sua certeza de que a justiça foi aplicada e o delinquente teve o fim que merecia. Morto, não corre o risco de escapar das grades e voltar às ruas para vingar-se, aproveitando-se de alguma brecha jurídica.

É como se os cidadãos da autoproclamada maior democracia do mundo confiassem menos em suas próprias leis do que no poder mortífero de um atirador, detentor do direito divino de fazer justiça com as próprias mãos.

Resta a pergunta: com a morte os crimes foram de fato redimidos? Minha opinião é um enfático NÃO! Uma vez que um preciso projétil arrancou-lhe a vida numa fração de segundo, sem que ele vivenciasse qualquer sofrimento, ele não teve oportunidade de ponderar sobre suas ações maléficas ou arrepender-se, pagando efetivamente por seus pecados através da perda da liberdade e da triste sina de ter parte de sua vida enclausurado no inferno de um cárcere. A verdadeira justiça só seria aplicada se o criminoso, ao invés de ter sua carcaça inerte levada a um cemitério, fosse conduzido em vida para a cadeia, amargando anos de tormenta por seus crimes atrás das grades de uma soturna cela, tendo oportunidade de avaliar se seus atos insanos valeram a pena.

Àqueles que argumentam que a penitenciária não regenera ninguém, que pensem no aprimoramento do código penal de maneira que a prisão cumpra seu requisito não apenas de recuperar o criminoso para a sociedade como fazê-lo efetivamente pagar pelo crime. Não na outra vida, mas aqui mesmo. É isso que a sociedade espera do sistema jurídico.

Não é essa a lição que Hollywood passa. Perpetua a visão de que é somente através das armas que resolveremos o problema da injustiça e da criminalidade. Com isso fortalece um sentimento de incredulidade nas instituições em promover a segurança do cidadão.

O direito ‘sagrado’ de ter uma arma é considerado tão básico que consta expressamente da Constituição americana, associado a um sentimento de liberdade, proteção do patrimônio e segurança individual contra a ação dos fora-da-lei.

Argumentos parecidos são evocados ou talvez macaqueados pelo presidente Bolsonaro, venerador de Trump e das armas, tema que, ao contrário do que ocorre em nosso irmão do Norte, parece não seduzir nosso povo que, apesar dos pesares, ainda mantém uma índole pacífica e cordial e é majoritariamente contra a política de flexibilização das armas teimosamente preconizada por nosso mandatário de plantão.

Num país onde questões mais graves como a fome, a miséria e a desigualdade social imperam, importar o bangue-bangue da cultura americana é uma boa maneira de lançar uma cortina de fumaça sobre as verdadeiras mazelas do nosso país.

Ao invés de investir num futuro melhor e mais humano preparando nossos jovens para a solidariedade e para a paz, estamos, com essa obtusa política armamentista, cultivando a morte e a violência, transformando ruas e parques, não em espaços comunitários de convivência, mas em arenas de combate, onde o outro é visto como ameaça em potencial.

 

 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

FAIR PLAY

You win some, lose some, it's all the same to me, the pleasure is to play (“Você ganha algumas, perde algumas, dá no mesmo para mim, a graça é jogar”) - Motorhead, Ace of Spades

 

“FAIR PLAY” é uma expressão inglesa originária do mundo esportivo que pode ser traduzida como “jogo limpo”, que traz a essência que inspirou o surgimento dos Jogos Olímpicos. Está associada à ideia de “espírito esportivo”, de “saber perder” e de que numa disputa o que vale é a luta e o empenho do competidor, independente do resultado final. Acima de qualquer coisa está o respeito às regras e a um código de conduta balizado pela ética.

Violam esse primado os contendores que se dopam e usam artifícios ilícitos, fazem “jogo sujo”, aplicam “golpes baixos”, dão soco abaixo da cintura, fazem gol com a mão e recorrem a outros expedientes para ludibriar a arbitragem.

Na outra ponta, são modelos de fair play aqueles que abdicam de vantagens espúrias e abrem mão da utilização de métodos que, embora não previstos nos regulamentos, constituem ações moralmente condenáveis. Optam por um caminho eticamente elevado, o que muito diz a respeito de seu caráter.

Como exemplo de atitudes louváveis, poderíamos citar a prática consagrada no futebol de se lançar a bola para fora do campo, interrompendo a partida, ao se perceber a contusão de um jogador do time adversário, nobre procedimento que o time beneficiário retribui. Ainda que não estejam explicitados em nenhum manual, tais procedimentos cavalheirescos dignificam os competidores. O prazer pessoal de agir com gentileza e cortesia confere a sensação engrandecedora de se estar bem consigo mesmo, de ter feito a coisa certa, de conectar-se com os princípios divinos, sentimento que supera a fútil vantagem de lucrar aproveitando-se egoisticamente de uma circunstância favorável.

No dia a dia, esse comportamento revela-se em atitudes cordiais como dar a vez ao idoso ou ao pedestre que atravessa a rua, recolher o papel jogado por alguém negligente, fazer doações a necessitados ou simplesmente ser amável com o próximo. Esses pequenos gestos de cidadania tornam o cotidiano mais saudável, a relação entre as pessoas mais gratificante e o mundo um lugar mais agradável de se viver.

Na esfera política, o fair play aplica-se ao regime democrático onde a disputa pelo poder subordina-se a regras a que os competidores comprometem-se civilizadamente a obedecer. Não nos referimos apenas às normas de licitude, observadas pela Justiça, mas também às normas de decoro e retidão que impedem que os candidatos, por exemplo, se valham de fake news para enganar os eleitores.

Respeitando tal princípio, os regimes abertos e livres, cujas normas impessoais são concebidas para fazer prevalecer a vontade autêntica da maioria, gabam-se de sua superioridade moral sobre os ditatoriais onde as determinações são impostas casuisticamente para beneficiar um déspota ou um pequeno grupo de indivíduos que visa se eternizar no poder.

Infelizmente, em várias nações ditas democráticas, constatamos uma degeneração desses sublimes preceitos. Nos EUA, justamente o país que abriga uma das autoproclamadas democracias mais respeitadas do planeta, o fair play deu uma degringolada.

Nas últimas eleições americanas houve um rompimento desse contrato implícito. O candidato Donald Trump recusou-se a aceitar o resultado eleitoral adverso, reconhecido por todas as instâncias institucionais certificadas para fazer cumprir com isenção o que determina a lei. O comportamento do ex-presidente demonstrou uma lastimável falta de “espírito esportivo”, arranhando indelevelmente o que por décadas prevaleceu como um dos pilares da credibilidade do sistema.

Recusou-se ademais a cumprimentar o legítimo vencedor, ato tradicional da cultura americana adotado quase que como um ritual, como forma de celebrar a legitimidade do resultado. O gesto simbólico de estender a mão ao adversário funciona como um aval para a sagração do processo de escolha, acima das rasteirices da disputa.

Não satisfeito com o estrago, Trump insuflou seus seguidores a invadir o Capitólio e destruir símbolos seculares do país. Os EUA que se gabavam de ostentar o modelo de democracia, apequenaram-se perante o mundo e os próprios cidadãos americanos, outrora orgulhosos de suas instituições.

No Brasil, onde, desde a redemocratização, a liturgia da troca de mandatários vem sendo acatada por políticos das mais diversas inclinações ideológicas, corremos o risco de ver repetida essa quebra ao fair play democrático.

O Trump tropical que nos governa invoca fantasmas como o ‘descrédito’ das urnas e a ‘imparcialidade’ da Justiça para deslegitimar o processo eleitoral que ameaça sua recondução ao cargo. O que transparece aqui é a lógica do menino birrento: caso eu não vença a partida, o resultado não vale e não tem mais jogo.

O presidente sugere a participação de seus amigos militares para inspecionar as eleições. Seria como se em uma partida de futebol do Brasileirão, o dirigente de um dos times recusasse o árbitro indicado pela CBF e exigisse que o escolhido seja seu segurança particular. Ora, segundo a Constituição cabe à Justiça Eleitoral e não às Forças Armadas o papel de assegurar a lisura das eleições. São as regras e quem quiser participar deve obedecê-las.

A ruptura do fair play nas democracias vem sendo acompanhada pela ascensão da cultura do ódio, própria do extremismo. As redes sociais têm fortalecido esse processo ao fomentar manifestações de intolerância. As pessoas são insufladas a assumir uma postura agressiva em relação a quem pensa diferente.

A violação do fair play replicou no campo esportivo, voltando-se contra o espírito que o originou. Os comportamentos dos atletas profissionais desvirtuaram-se em função do excessivo apego ao dinheiro e à fama. O ‘amor à camisa’, tão vinculado ao esporte amador, está em vias de extinção.

Essa tendência revela-se também no comportamento virulento das torcidas organizadas. Ante a escalada de selvageria, as diferenças não são resolvidas no gramado segundo as regras, mas com base da violência de barras de ferro, rojões e até armas de fogo usadas contra os simpatizantes do time adversário.

Além da esfera esportiva e política, a ruptura do fair play se manifesta no racismo, na homofobia, no ódio contra imigrantes e minorias e no campo religioso onde cada vez mais prevalece a intolerância aos que seguem outros cultos, como religiões de matrizes africanas.

É triste e preocupante assistir a derrocada do fair play nesses tempos sombrios. É um degrau abaixo em direção à barbárie para a qual parece caminhar nossa civilização.

 

 

 

 

 


segunda-feira, 2 de maio de 2022

O MOVIMENTO DAS COISAS

“Sem preconceito, ou mania de passado, sem querer ficar do lado de quem não quer navegar, faça como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar” (Paulinho da Viola em “Argumento”)

 

Vejo as coisas ao meu redor mudarem tão rapidamente que hesito em me posicionar sobre elas.

Livros que no passado devorei avidamente e que me forneceram ensinamentos tão preciosos que me pareceram eternos, hoje se deterioram nas prateleiras sob o efeito deletério do tempo. E não apenas por suas páginas amareladas nem pelas passagens que me pareceram tão notáveis que mereceram ser sublinhadas a caneta, hoje pálidas marcas borradas, desgastadas pelo bolor da obsolescência.

Maneiras de como alcançar um mundo melhor, pelas quais valia a pena lutar a fim de construir uma sociedade mais justa, hoje claudicam na incerteza sobre o futuro possível do planeta devastado, fruto do nosso falido projeto civilizatório.

Até o que a ciência estabelece como verdade inquestionável, estará irremediavelmente condenado pelas teorias em gestação que produzirão novas leis ‘definitivas’, com prazo de validade até a data da próxima pandemia.

Peças publicitárias que, a nossos inocentes olhos eram totalmente triviais, hoje ardem nas fogueiras inquisitoriais do “politicamente correto” ou são aposentadas compulsoriamente pelos novos padrões estéticos. Parecem-nos agora tão ridículas quanto os automóveis quadrados com cores berrantes que rodavam pelas ruas de paralelepípedos iluminadas por postes da Light.

Filmes instruem didaticamente como transformar pessoas vivas em cadáveres sanguinolentos e games hiper-realistas adestrados por crianças de jardim de infância ensinam como perfurar a tiros outros seres humanos com requintes de violência. Há 30 anos, seriam objeto de indignação pelos vigilantes pais, hoje ineptos avós caretas e carecas.

Um beijo na boca entre dois homens que, há não muitos anos, só seria tolerado em ambientes restritos, invade com naturalidade os lares, via novela das 7 da Globo, sob o olhar incrédulo dos tiozões. Comportamentos ‘liberais’, comuns em praias cariocas, adentram pela telinha sem pedir licença em pequenas comunidades do interior onde vigora um outro estilo de vida e costumes mais recatados.

Entram nesse balaio questões espinhosas como a ideologia de gênero, o feminismo, o consumo de drogas, o aborto e outros temas que afrontam uma sociedade arcaica ainda atrelada a velhos paradigmas e que não consegue digerir tantas novidades num espaço de tempo tão pequeno.

Importante ressaltar que todas essas demandas são legítimas e merecem ser apreciadas e discutidas sem preconceitos. Não se trata de contestar sua pertinência, mas a velocidade com que são submetidas a uma sociedade que se debate para não perder suas escassas referências.

Em consequência, surge um apego cada vez maior a um passado razoável onde as coisas pareciam ‘fazer sentido’ e o tempo transcorria num ritmo mais prudente, compatível com os ciclos da Natureza e com as vibrações pulsáteis do nosso organismo que modulam o fluxo da vida.

Talvez tais questões sejam de interesse da sociologia e da psicologia. Minha abordagem é, digamos, mais ‘antropológica’, posto que aborda os chamados valores culturais milenarmente erigidos.

Alega-se que nossa sociedade, ao lidar com essas mudanças, é ‘conservadora’, na acepção pejorativa do termo. Trata-se a meu ver de uma inverdade, já que esse suposto ‘conservadorismo’ diz respeito à conservação da identidade cultural moldada ao longo de gerações. São valores que, ‘certos’ ou ‘errados’, constituem a essência dessa identidade e não podem ser desconstruídos abruptamente.

Penso que os setores progressistas da sociedade, comprometidos em oferecer um futuro melhor para todos, devem rever as estratégias políticas em lidar com tais questões para não se desconectarem de amplos setores sociais que se sentem escanteados com o avanço das novas pautas que têm surgido. 

Talvez você pense que tais ponderações não passem de masturbação mental de um pobre escritor retrógrado que perdeu o bonde da história. Prefiro acreditar tratar-se de uma humilde contribuição para reflexão sobre as vicissitudes da modernidade.