segunda-feira, 2 de maio de 2022

O MOVIMENTO DAS COISAS

“Sem preconceito, ou mania de passado, sem querer ficar do lado de quem não quer navegar, faça como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar” (Paulinho da Viola em “Argumento”)

 

Vejo as coisas ao meu redor mudarem tão rapidamente que hesito em me posicionar sobre elas.

Livros que no passado devorei avidamente e que me forneceram ensinamentos tão preciosos que me pareceram eternos, hoje se deterioram nas prateleiras sob o efeito deletério do tempo. E não apenas por suas páginas amareladas nem pelas passagens que me pareceram tão notáveis que mereceram ser sublinhadas a caneta, hoje pálidas marcas borradas, desgastadas pelo bolor da obsolescência.

Maneiras de como alcançar um mundo melhor, pelas quais valia a pena lutar a fim de construir uma sociedade mais justa, hoje claudicam na incerteza sobre o futuro possível do planeta devastado, fruto do nosso falido projeto civilizatório.

Até o que a ciência estabelece como verdade inquestionável, estará irremediavelmente condenado pelas teorias em gestação que produzirão novas leis ‘definitivas’, com prazo de validade até a data da próxima pandemia.

Peças publicitárias que, a nossos inocentes olhos eram totalmente triviais, hoje ardem nas fogueiras inquisitoriais do “politicamente correto” ou são aposentadas compulsoriamente pelos novos padrões estéticos. Parecem-nos agora tão ridículas quanto os automóveis quadrados com cores berrantes que rodavam pelas ruas de paralelepípedos iluminadas por postes da Light.

Filmes instruem didaticamente como transformar pessoas vivas em cadáveres sanguinolentos e games hiper-realistas adestrados por crianças de jardim de infância ensinam como perfurar a tiros outros seres humanos com requintes de violência. Há 30 anos, seriam objeto de indignação pelos vigilantes pais, hoje ineptos avós caretas e carecas.

Um beijo na boca entre dois homens que, há não muitos anos, só seria tolerado em ambientes restritos, invade com naturalidade os lares, via novela das 7 da Globo, sob o olhar incrédulo dos tiozões. Comportamentos ‘liberais’, comuns em praias cariocas, adentram pela telinha sem pedir licença em pequenas comunidades do interior onde vigora um outro estilo de vida e costumes mais recatados.

Entram nesse balaio questões espinhosas como a ideologia de gênero, o feminismo, o consumo de drogas, o aborto e outros temas que afrontam uma sociedade arcaica ainda atrelada a velhos paradigmas e que não consegue digerir tantas novidades num espaço de tempo tão pequeno.

Importante ressaltar que todas essas demandas são legítimas e merecem ser apreciadas e discutidas sem preconceitos. Não se trata de contestar sua pertinência, mas a velocidade com que são submetidas a uma sociedade que se debate para não perder suas escassas referências.

Em consequência, surge um apego cada vez maior a um passado razoável onde as coisas pareciam ‘fazer sentido’ e o tempo transcorria num ritmo mais prudente, compatível com os ciclos da Natureza e com as vibrações pulsáteis do nosso organismo que modulam o fluxo da vida.

Talvez tais questões sejam de interesse da sociologia e da psicologia. Minha abordagem é, digamos, mais ‘antropológica’, posto que aborda os chamados valores culturais milenarmente erigidos.

Alega-se que nossa sociedade, ao lidar com essas mudanças, é ‘conservadora’, na acepção pejorativa do termo. Trata-se a meu ver de uma inverdade, já que esse suposto ‘conservadorismo’ diz respeito à conservação da identidade cultural moldada ao longo de gerações. São valores que, ‘certos’ ou ‘errados’, constituem a essência dessa identidade e não podem ser desconstruídos abruptamente.

Penso que os setores progressistas da sociedade, comprometidos em oferecer um futuro melhor para todos, devem rever as estratégias políticas em lidar com tais questões para não se desconectarem de amplos setores sociais que se sentem escanteados com o avanço das novas pautas que têm surgido. 

Talvez você pense que tais ponderações não passem de masturbação mental de um pobre escritor retrógrado que perdeu o bonde da história. Prefiro acreditar tratar-se de uma humilde contribuição para reflexão sobre as vicissitudes da modernidade.

 

 

5 comentários:

Anônimo disse...

Perfeita análise de uma modernidade descontrolada e destrutiva de um então que vem se perdendo
Ah!que saudade que tenho dos anos passados

Anônimo disse...

Lindo e verdadeiro Quando começamos a pensar já foi Parabéns Se’

Anônimo disse...

É justamente a frase que escolhi, já foi dita: "Que vontade de retornar ao passado". Parabéns Sergio. Em sua descrição nada foge do momento atual, infelizmente.

Anônimo disse...

Parabéns Sérgio. Retrato claro da situação atual. Como já foi dito no comentário anterior: Que vontade de voltar passado!

Mônica Silveira disse...

Querido amigo, Sérgio, eu também me assusto com a velocidade das mudanças, boa e más. É como se estivéssemos num caldeirão fervendo, mas acredito que quando o fogo baixar teremos um bom alimento, se a comida não queimar. Por que existe uma resistência às mudanças, principalmente as que estão ligadas à liberdade de ser , de defender direitos e de buscar mais igualdade social. Em oposição temos tambem o radicalismo, tanto do conservadorismo como do politicamente correto. Aí vem o negacionismo, a censura, a violência, o racismo, a homofobia de um lado. E a censura de Monteiro Lobato, e outros autores, exclusão de expressões tradicionais, restrições por ideologia etc do outro lado. Mas vamos nos adaptando, tentando um equilíbrio físico e mental. Parabéns belo belo artigo.