domingo, 29 de junho de 2014

TRATADO DO PORÃO (Final)


No I Ching, além do Caldeirão, o único dos 64 hexagramas que se refere a objeto feito pelo homem é o de número 48, O Poço. Ora, o poço nada mais é do que primo de segundo grau do porão, guardando com ele alguns evidentes elementos comuns (buraco, escuro, subsolo). Diz o oráculo chinês: “Pode-se mudar uma cidade, mas não um poço (...). O poço representa a fonte que atende às necessidades primordiais dos seres, e permanece inalterada desde a mais remota antiguidade. Mudam-se os usos e os costumes, os estilos de comportamento e as expressões culturais, mas a forma do poço continua a mesma, simbolizando as necessidades imutáveis da existência humana”. Os atributos que o sagrado livro milenar associa ao poço poderiam ser perfeitamente imputados para o porão.

Assim como seu primo zen, o porão jamais deixará de existir enquanto a sociedade estiver fundamentada na célula mater da família, pois atende a uma carência básica desse grupamento humano. O porão não é um simples aposento do núcleo familiar. É a materialização da necessidade que as famílias têm de conservar parte do passado e não se desvincular de coisas que um dia tiveram serventia. Se hoje não são mais úteis por suas características originais, passaram a sê-lo por atenderem a uma nova necessidade. A de preservar algo representativo do passado, a fim de ajudar a fixar nossa identidade como seres viventes providos de memória e sentimentos de saudade e gratidão.

Segundo o Feng Shui, o porão simboliza sentimentos enraizados em nosso subconsciente. Pode representar ainda desejos reprimidos.  Assim como ocorre com esses sentimentos, não é algo para ser aniquilado, extinto. Deve ser mantido organizado, limpo e bem iluminado para impedir a fixação de energias negativas.

Tal como os coveiros, os advogados, as putas e seus filhos, os políticos, os porões são discriminados por todos mas ninguém pode viver sem seus préstimos. Desempenham um papel importante na sociedade. Lidam com coisas que não fazem mais parte do nosso cotidiano. O porão é o mal necessário, o patinho feio da casa, para onde são jogados os restos dos desejos. Sem eles, como poderíamos nos permitir protelar ou deixar de exercer nossas difíceis decisões de nos desapegarmos de certos objetos? Na dúvida: joga, não joga? Vai pro porão.

A cada limpa geral, os objetos úteis e bonitos ganham, por seus méritos, um lugar ao sol na residência. Os inúteis, feios, desgastados e quebrados vão para o lixo. Os restantes, que naquele momento, não se enquadram com precisão em uma destas categorias, vão para o porão. E dá-lhe a entulhar os 9 m3, o tamanho da nossa indeterminação. Os que dispõem de compartimentos com 18 m3, podem dar-se ao luxo de serem duas vezes mais indefinidos.

Se dispuséssemos de um espaço enorme para o porão, todo ele seria utilizado. O porão pode ser subterrâneo e subvalorizado mas jamais é subutilizado. Com assiduidade é mudada a disposição dos objetos nele contidos para ver se não entra mais alguma coisinha, de modo a otimizar sua ocupação. Cada centímetro cúbico é aproveitado para impedir que algo seja sacrificado. Trata-se de uma contradição: enquanto os ambientes mais nobres da casa, frequentemente mantêm espaços vazios para permitir a locomoção, dispondo-se os objetos distantes uns dos outros, o depreciado porão comporta-se como o próprio coração de mãe, servindo de guarda para tudo quanto é tranqueira. Cada pedacinho é disputado com unhas e dentes. Fosse ele dez vezes maior, dez vezes maior seria a utilização que dele se faz. Ou seja, o porão, além de criar o tamanho de sua própria ocupação, ou seja 100%, cria também o grau de indeterminação que nos é possibilitado ter. De onde se depreende que porões pequenos obrigam-nos a tomar decisões mais dolorosas.

Abriga os objetos que se situam no limbo próximo ao meio da escala, cujos extremos são o imprescindível e o lixo. Uma tênue região entre o necessário e o desnecessário. Não são suficientemente importantes para ganharem um lugar nas áreas mais nobres (nem nas menos) do lar. Mas, ao serem preteridos de todos os demais aposentos, a opção ‘lixo’ também é descartada. É cruel demais. Nossa consciência não consente com tamanha maldade. Acaba indo pro purgatório do porão, onde cumprirá castigo eterno por não ter logrado manter uma relação de intimidade com o senhorio, mas... merece uma segunda chance. Quem sabe no futuro?


(Texto extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU)

À Cíntia