sábado, 12 de agosto de 2023

O HOMEM-OVO DO PARTIDO NOVO

 

“O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô baiano, vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro” (Paratodos, Chico Buarque)

O governador de MG propôs a formação de uma frente do Sul/Sudeste em oposição ao ‘resto’ do país, reacendendo entre os brasileiros uma polêmica que parecia ter sido esquecida: o separatismo. Por trás da proposta dessa frente (que tem o inspirado nome de COSUD) está o sentimento mal digerido de que o descondenado ‘molusco barbudo de nove dedos’ foi eleito graças a uma parcela da população mais inculta especialmente do Nordeste, em oposição àquelas ‘civilizadas’ que preferiram o capitão-mito.

Além de discriminatória, essa visão não traduz a realidade dos fatos. Na capital financeira do país, São Paulo, por exemplo, Lula venceu. E não apenas nas áreas periféricas, mas em bairros de classe média alta que abrigam a elite intelectual como Pinheiros, Perdizes e Vila Mariana. Da mesma forma, ainda que perdendo no Rio de Janeiro, o ex-metalúrgico foi o mais votado na badalada e abastada Zona Sul carioca. No próprio território que preside, o vitorioso Zema não conseguiu transferir maioria para seu aliado Bolsonaro, que saiu derrotado em Minas.

Por outro lado, ao contrário do que se imagina, os triunfos mais retumbantes de Bolsonaro não ocorreram nas reservas de urbanidade europeia do Sul e do Centro Oeste (onde floresce o agronegócio), e sim nos distantes rincões inóspitos de Rondônia, Roraima e Acre, estados paupérrimos do Norte onde correm soltas atividades ilegais de garimpo, extração de madeira e pesca predatória, toleradas e até incentivadas pelo governo anterior.

Seja como for, os números atestam que, excluindo-se os votos do Nordeste, o resultado eleitoral teria sido outro, o que provocou inconformismo das elites neoliberais, gerando aversão contra as populações daquela região. Choveram manifestações preconceituosas contra os paraíbas ‘cabeças chatas’. Sentimento que respingou em outros segmentos marginalizados da sociedade como mulheres, LGBTQIAP+, negros, quilombolas, índios e favelados que majoritariamente sufragaram o nome do candidato petista.

Dessa maneira, tornou-se Zema (voluntária ou involuntariamente) o porta-voz de grupos separatistas de extrema direita que preconizam a divisão do país em duas partes: de um lado, o Sul Maravilha, rico, progressista, moderno, desenvolvimentista, trabalhador, e de outro o Norte/Nordeste onde impera o subdesenvolvimento, o atraso, a indolência e a miséria. Reivindicam alguns a construção de barreiras preservando o país que “dá certo” da invasão da ‘baianada’, reverberando a ideia xenófoba de Trump de erguer um muro para impedir o acesso dos chicanos ao paraíso capitalista.

Só que, com isso, o asséptico governador do Partido Novo complicou-se em suas pretensões de chegar à presidência, já que dificilmente poderá contar no futuro com o expressivo voto nordestino. Tancredo diria que foi pouco “mineiro” em suas colocações.

Aliás, apesar de ser empresário e de família chique, a inteligência e a cultura não parecem ser o forte do sr. Zema. O simplório governador mineiro é pródigo em cometer gafes que constrangem seus próprios conterrâneos como quando nomeou pejorativamente a Inconfidência Mineira, a mais importante rebelião da história nacional contra o jugo colonial, de ‘ato golpista’. Só faltou chamar Tiradentes de esquerdinha. Em outra ocasião, ao visitar Divinópolis e receber como oferenda de uma emissora local um livro de poesias, indagou quem seria essa tal de Adélia Prado, autora da obra: “ela trabalha aqui?”, deixando desconsertado o apresentador que teve de explicar tratar-se de uma das mais conceituadas poetisas brasileiras, natural daquele município mineiro. Ao ser entrevistado pela CNN, face à interferência sonora, a repórter interpelou: “O senhor me ouve, governador?” ao que o mesmo respondeu em alto e bom som: “Eu ovo sim”, o que lhe valeu a alcunha de Romeu Gema.

O espantoso é que o bom moço cursou administração na FGV, o que nos leva a perguntar como uma escola cara e prestigiosa, com tal nível de excelência, pode produzir um sujeito tão tosco culturalmente.

Esse é o homem público que pretende liderar a cruzada contra as “vaquinhas que produzem pouco” (como se referiu ao povo nordestino). Não deve ter sido informado que 249 das 853 cidades mineiras estão sob a atuação da SUDENE, ou seja, por suas características geográficas, foram classificadas como se integrassem o Nordeste. Com a divisão proposta pelo governador almofadinha, em qual dos dois Brasis ficaria essa área nebulosa que se assemelha mais ao semiárido baiano do que ao Triângulo Mineiro? Abririam mão os briosos herdeiros de JK e Magalhães Pinto de 30% de seus municípios para fazer valer as ideias segregacionistas de seu atual mandatário?

Afora isso, a ideia de que os nordestinos são menos instruídos não se sustenta. Ocorre exatamente o contrário. As escolas de ensino básico e médio do Nordeste têm sido nos últimos anos referência em qualidade. Os resultados dos exames do ENEM indicam que nos três últimos anos, das melhores notas de redação (que atesta maior capacidade de elaboração dos estudantes), a ampla maioria é de alunos nordestinos enquanto a “desenvolvida” região Sul amarga resultados medíocres.

Fosse aplicada a separação pretendida por Zema e sua legião de admiradores, ficaríamos privados de personalidades irrelevantes como Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Paulo Freire, Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua, Gilberto Freyre, Nélson Rodrigues, Dias Gomes, Celso Furtado, Milton Santos, Aurélio Buarque de Holanda, Assis Chateaubriand, Mário Schenberg, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Kleber Mendonça Filho, Aguinaldo Silva, Chico Anysio, Wagner Moura, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Patativa de Assaré, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, José de Alencar, Gonçalves Dias, Aloísio Azevedo, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Ferreira Gullar, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Manuel Bandeira, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Raul Seixas, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Sivuca, Gal Costa, Maria Bethânia, João Gilberto, Fagner, Belchior, Djavan, Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, Morais Moreira, Alcione, Simone, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Catulo da Paixão Cearense, Tom Zé, Zeca Baleiro, Lenine, Chico César e muitos outros.

Em compensação, teríamos do nosso lado o Romeu Gema, o homem-ovo do COSUD. Capitanearia ele um país de mauricinhos onde não haveria gente preta, feia e suja. Com tais credenciais, gabarita-se a ser um legítimo herdeiro do brucutu que apoiou para presidente.