quarta-feira, 20 de junho de 2018

COPA



A Copa do Mundo é fascinante. O que mais me encanta, todavia, não é o futebol em si mas um aspecto, digamos, sociológico do evento: o congraçamento entre os povos que ele possibilita.
Parece surreal que nações com culturas e sistemas de governo tão díspares, com divergências aparentemente irreconciliáveis, que se recusam a sentar à mesa para dialogar acerca de um mero acordo econômico ou de desarmamento, disponham-se, respeitosas, a participar de um evento coletivo, obedecendo obsequiosamente a suas estritas regras.
É verdade, estiveram ausentes países “polêmicos” como EUA, Coreia do Norte, Afeganistão, Turquia, Síria, Palestina, Israel, Venezuela. Mas não foi por boicote ou motivos políticos e sim por meras razões “técnicas”: perderam os jogos na fase de classificação e ficaram de fora.
Até o Estado Islâmico ou o Talibã, se chegassem ao poder, já estariam ansiosamente se preparando, imagino, para enviar equipes. Xiitas, sionistas, bolivarianos, neoliberais, xenófobos e comunistas, todos se rendem à magia do velho ‘soccer’, que desde que foi criado na Inglaterra há 120 anos, vem se espalhando pelo mundo mais rápido que o capitalismo.
Parece que o tal “football” tem essa capacidade de se sobrepor a outros aspectos da vida comunitária sem ser por eles contaminado.
E não adianta vir com nhem nhem nhem´s filosóficos, ideológicos, econômicos. As regras são claras. Ganha quem colocar, sem usar as mãos, a bola mais vezes entre as traves da equipe adversária. Ponto final!
Ao ingressar em campo, as condições são equânimes. Sem privilégios, quotas, barreiras cambiais ou sobretaxas. O destino do embate é ditado por aquele objeto esférico de 20 cm de diâmetro e menos de meio kilo, a cujos caprichos todos se rendem, resignados. 
Europeus, asiáticos, americanos, africanos e australianos, ao ingressarem em campo, esquecem suas crenças, idiossincrasias e preconceitos. Passam a ter um único objetivo pelos próximos 90 minutos: encaixar a redonda no exíguo espaço retangular de 2,44 m de altura por 7,32 m de largura, que ainda por cima é guarnecido por um sujeito que, não bastasse, pode usar as mãos!
Para conseguir ascendência sobre o adversário, cada país recruta diligentemente 11 homens. Não são soldados munidos de morteiros e granadas que portam vestimentas a prova de balas. Os convocados são apenas atletas trajando short e camiseta, cujo diferencial se resume à habilidade em se relacionar com o tal objeto esférico. E a batalha não é para impor seu sistema de governo ou a hegemonia do seu povo. É simplesmente para inserir um número de arremetidas no espaço retangular (alcunhado de gol) do outro, superior às que o adversário fará no seu. 
  Tal objetivo não é atingido através de corrida armamentista nem ações diplomáticas. As diferenças são resolvidas dentro do campo pelas equipes mediadas por um juiz, ao que se espera, imparcial. Os representantes zelam para que não haja conluio dos organizadores para prejudicá-los. Prevalece um clima de confiança nas instituições futebolísticas.
Há, é verdade, um organismo internacional que estabelece as regras e administra o funcionamento, a FIFA. Afora naturais divergências apaziguáveis e alguma corrupção, a coisa mais ou menos funciona, tanto que as delegações do mundo inteiro, apesar de alguma chiadeira, se submetem. Tudo é feito pela entidade supranacional, num sistema de representação eficiente que deveria ser modelo para a inoperante ONU.
Em outras circunstâncias, o futebol não tem essa mesma natureza, digamos, democrática. O poder da grana e patrocínios milionários têm cada vez mais extraído a beleza e a espontaneidade do jogo. Mas durante a Copa do Mundo, esse aspecto maléfico fica menos evidente pois os jogadores, independente do time que os contratou, comparecem defendendo sua nação com o que têm de melhor: a técnica germânica, o improviso brasileiro, a frieza britânica, a garra portenha, a velocidade senegalesa, a disciplina nipônica etc.
Um certo cuidado é necessário para impedir o doping ou alguma marmelada escusa para melar a lisura da disputa. Ainda mais em se tratando do país de Vladimir Putin. Mesmo assim, durante a trégua ensejada pelo certame, é hora de desarmar os espíritos.
O país-sede empenha-se em receber de braços abertos os visitantes. Nenhum anfitrião nessa hora quer dar vexame e passar por troglodita intolerante. A boa recepção de convidados garante uma boa imagem perante os bilhões de espectadores grudados na telinha.
Quem viu o afável presidente russo posar sorridente para as câmaras na solenidade de abertura, jamais poderia imaginar que se trata do ex-agente da KGB que elimina desafetos e fornece armas para ditadores sanguinários.
Nessa hora, a recepção cordial aos estrangeiros é imprescindível para que esses levem boa impressão para casa. E, cientes dessas circunstâncias, turistas de todo o mundo se reúnem para celebrar o torneio carregados de dólares. Nos estádios, as torcidas se misturam sem agressões. Afora, a presença de meia dúzia de patéticos hooligans, o que se vê são torcedores alegres portando bandeiras e adereços que querem apenas incentivar seu time, num clima saudável e festivo de competição esportiva.
Quadro bem diferente daquilo em que se transformaram os campeonatos nacionais ou regionais em que organizações criminosas alcunhadas de “torcidas organizadas” vão a campo, munidas de porretes e barras de ferro para eliminar fisicamente os torcedores rivais.
O futebol tem essa virtude de fascinar igualmente pessoas de todas as culturas e continentes. Muçulmanos, judeus, cristãos, budistas, todos esquecem provisoriamente seus dogmas e se rendem à magia da bola rolando no gramado e da emoção da rede balançada.
Cá no Brasil, a rivalidade antes focada nos que têm ideias divergentes, transfere-se para os adversários escalados pela tabela. Nossos inimigos da ocasião são a Suíça, a Costa Rica, a Sérvia. Ao invés de odiar Temer, Lula ou FHC, as pessoas voltam seu fogo para o juiz ladrão, o técnico “burro” e a violência do zagueiro oponente.
Mas não nos iludamos. Decorrido o armistício proporcionado pela Copa, tudo voltará como era dantes. Erguida a taça, finalizados os festejos de encerramento, e retornando os torcedores a seus lares, o espírito esportivo é sepultado. Putin poderá voltar a dedicar-se a financiar a morte de crianças sírias e cá no Brasil voltaremos a nos trucidar uns aos outros nas redes sociais.


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