Deparei-me com a notícia de que um certo ‘Kirk-não-sei-o-que’ fora morto por um tiro em uma universidade americana. “Mais um, que tristeza!”, foi a primeira reação ao trágico acontecimento. Algo rotineiro num país onde é mais fácil comprar armas do que um pacote de bolachas e é bastante comum frequentadores inocentes de instituições de ensino servirem de alvo para quem quer botar em prática suas habilidades balísticas adquiridas em clubes de tiro.
O diferencial nesse caso era que se
tratava de um ativista com milhões de seguidores, um jovem influencer cuja
morte ecoou profundamente nos círculos conservadores.
Mais tarde, vim a saber que o tal Kirk
era um ferrenho defensor da liberação total das armas, tendo afirmado algo como
“ter algumas mortes a mais causadas por armas é o preço que temos a pagar para
mantermos o direito de andar armados”, ao que me levou a deduzir que foi
vitimado por sua própria profecia. Talvez, num plano espiritual superior repensasse:
“acho que falei besteira”.
Mas não era certo prejulgá-lo por uma
frase infeliz. Não importa quem fosse, a notícia de seu assassinato me comoveu
e particularmente me doeu saber que deixou a mulher e filhos ao desamparo ainda
que tenha sido alçado à condição de ‘mito’. É sempre lamentável constatar que
um ‘homem de família’, uma pessoa ‘de bem’, tenha sido baleado ainda mais quando
debatia com estudantes num ambiente universitário onde as ideias devem ser demovidas
por outras ideias, nunca por balas.
Achando que viraria a ‘página Kirk’
de minhas preocupações, surpreendi-me ao ver nos dias seguintes pipocarem
inúmeros vídeos e postagens de brasileiros lamentando a morte do tal ativista e
expressando ódio pelo responsável, provavelmente um comunista fanático ou um
terrorista islâmico, algo que para sua decepção não se confirmou, já que o atirador
era um americano branco de família trumpista tradicional.
Choveram na internet inúmeras
manifestações de pesar com milhares de likes de consternação pelo tal Kirk que,
de um momento para outro, passou a ser a reencarnação de Jesus na terra do bang
bang. Uma animação apresentava-o cercado por uma aura angelical sendo recepcionado
no céu por Cristo em pessoa com um abraço afetuoso.
Como é possível que justo eu que
tenho o hábito de acompanhar notícias inclusive de jornais gringos, nunca tenha
ouvido falar nesse sujeito tão carismático a ponto de ter intimidade com o
filho de Deus?
A morte de ‘São Kirk’ passou a ser o
top da semana, encabeçando os assuntos mais comentados. Dona Filomena cuja única
leitura em décadas foi a Bíblia de repente passou a bradar freneticamente nas
redes sociais sobre mais esse crime da esquerda maligna que recaiu sobre um devoto
cristão. O sr. Godofredo que se informa por whatsapps e acredita que a covid
foi uma conspiração globalista, de repente passou a discorrer com propriedade
sobre a grandeza da obra deixada por aquele homem beatificado.
O assunto continuou rendendo e tanto
nos EUA como por aqui jornalistas e até historiadores foram penalizados, perderam
o emprego ou foram cancelados por ousar criticar aquele cara inatacável, acima
do bem e do mal, lançando uma nódoa sobre alguém tão imaculado.
Eu que antes cogitara engavetar o
Kirk, percebi-me de repente envolvido no redemoinho dessa polêmica, vendo-me na
contingência de procurar entender um pouco mais sobre esse fenômeno, capaz de
despertar paixões desenfreadas.
Descobri por sua biografia que o Sr.
Kirk não tinha um comportamento condizente com a ética cristã, como eu a
concebia. Era ele supremacista, não apreciava negros, achando Martin Luther
King uma farsa e que os EUA estavam melhores quando eram um país ‘mais branco e
homogêneo’. Atacava o movimento LGBT, a diversidade e os imigrantes. Julgava legítimo Israel, por ter direito
bíblico à Palestina, praticar genocídio matando de fome milhares de crianças
cujo único pecado fora nascer no lugar errado. Não gostava de ninguém que não
professasse o cristianismo tradicional, única religião aceitável. A nação
deveria ser guiada não pela Constituição, mas por preceitos bíblicos. Flertava
com práticas autoritárias, incentivando perseguição política, intolerância religiosa
e censura ideológica. Atacava jornalistas, intelectuais, artistas e professores.
Depois de me inteirar sobre seu
pensamento ‘in totum’, deixei de ter simpatia pelo Sr. Kirk, o santo do
pau oco, passando a considerar que o mundo não ficaria mais pobre com sua
ausência. Nem por isso festejei sua morte. Preferiria que continuasse bem vivo
para reavaliar suas ideias racistas e xenófobas e aprimorasse seu pensamento.
Talvez o contato por mais tempo com quem pensasse diferente permitisse-lhe desistir
de doutrinar seus desafetos. E percebesse o quão babaca ele era.