terça-feira, 23 de setembro de 2025

SÃO KIRK

 
Deparei-me com a notícia de que um certo ‘Kirk-não-sei-o-que’ fora morto por um tiro em uma universidade americana. “Mais um, que tristeza!”, foi a primeira reação ao trágico acontecimento. Algo rotineiro num país onde é mais fácil comprar armas do que um pacote de bolachas e é bastante comum frequentadores inocentes de instituições de ensino servirem de alvo para quem quer botar em prática suas habilidades balísticas adquiridas em clubes de tiro.

O diferencial nesse caso era que se tratava de um ativista com milhões de seguidores, um jovem influencer cuja morte ecoou profundamente nos círculos conservadores.

Mais tarde, vim a saber que o tal Kirk era um ferrenho defensor da liberação total das armas, tendo afirmado algo como “ter algumas mortes a mais causadas por armas é o preço que temos a pagar para mantermos o direito de andar armados”, ao que me levou a deduzir que foi vitimado por sua própria profecia. Talvez, num plano espiritual superior repensasse: “acho que falei besteira”.

Mas não era certo prejulgá-lo por uma frase infeliz. Não importa quem fosse, a notícia de seu assassinato me comoveu e particularmente me doeu saber que deixou a mulher e filhos ao desamparo ainda que tenha sido alçado à condição de ‘mito’. É sempre lamentável constatar que um ‘homem de família’, uma pessoa ‘de bem’, tenha sido baleado ainda mais quando debatia com estudantes num ambiente universitário onde as ideias devem ser demovidas por outras ideias, nunca por balas.

Achando que viraria a ‘página Kirk’ de minhas preocupações, surpreendi-me ao ver nos dias seguintes pipocarem inúmeros vídeos e postagens de brasileiros lamentando a morte do tal ativista e expressando ódio pelo responsável, provavelmente um comunista fanático ou um terrorista islâmico, algo que para sua decepção não se confirmou, já que o atirador era um americano branco de família trumpista tradicional.

Choveram na internet inúmeras manifestações de pesar com milhares de likes de consternação pelo tal Kirk que, de um momento para outro, passou a ser a reencarnação de Jesus na terra do bang bang. Uma animação apresentava-o cercado por uma aura angelical sendo recepcionado no céu por Cristo em pessoa com um abraço afetuoso.

Como é possível que justo eu que tenho o hábito de acompanhar notícias inclusive de jornais gringos, nunca tenha ouvido falar nesse sujeito tão carismático a ponto de ter intimidade com o filho de Deus?

A morte de ‘São Kirk’ passou a ser o top da semana, encabeçando os assuntos mais comentados. Dona Filomena cuja única leitura em décadas foi a Bíblia de repente passou a bradar freneticamente nas redes sociais sobre mais esse crime da esquerda maligna que recaiu sobre um devoto cristão. O sr. Godofredo que se informa por whatsapps e acredita que a covid foi uma conspiração globalista, de repente passou a discorrer com propriedade sobre a grandeza da obra deixada por aquele homem beatificado.

O assunto continuou rendendo e tanto nos EUA como por aqui jornalistas e até historiadores foram penalizados, perderam o emprego ou foram cancelados por ousar criticar aquele cara inatacável, acima do bem e do mal, lançando uma nódoa sobre alguém tão imaculado.

Eu que antes cogitara engavetar o Kirk, percebi-me de repente envolvido no redemoinho dessa polêmica, vendo-me na contingência de procurar entender um pouco mais sobre esse fenômeno, capaz de despertar paixões desenfreadas.

Descobri por sua biografia que o Sr. Kirk não tinha um comportamento condizente com a ética cristã, como eu a concebia. Era ele supremacista, não apreciava negros, achando Martin Luther King uma farsa e que os EUA estavam melhores quando eram um país ‘mais branco e homogêneo’. Atacava o movimento LGBT, a diversidade e os imigrantes.  Julgava legítimo Israel, por ter direito bíblico à Palestina, praticar genocídio matando de fome milhares de crianças cujo único pecado fora nascer no lugar errado. Não gostava de ninguém que não professasse o cristianismo tradicional, única religião aceitável. A nação deveria ser guiada não pela Constituição, mas por preceitos bíblicos. Flertava com práticas autoritárias, incentivando perseguição política, intolerância religiosa e censura ideológica. Atacava jornalistas, intelectuais, artistas e professores.

Depois de me inteirar sobre seu pensamento ‘in totum’, deixei de ter simpatia pelo Sr. Kirk, o santo do pau oco, passando a considerar que o mundo não ficaria mais pobre com sua ausência. Nem por isso festejei sua morte. Preferiria que continuasse bem vivo para reavaliar suas ideias racistas e xenófobas e aprimorasse seu pensamento. Talvez o contato por mais tempo com quem pensasse diferente permitisse-lhe desistir de doutrinar seus desafetos. E percebesse o quão babaca ele era.

 

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