Deparei-me com a notícia de que um certo ‘Kirk-não-sei-o-que’ fora morto por um tiro em uma universidade americana. “Mais um, que tristeza!”, foi a primeira reação ao trágico acontecimento. Algo recorrente num país onde é mais fácil comprar armas do que um pacote de bolachas e é rotineiro frequentadores inocentes de instituições de ensino servirem de alvo para praticantes exercitarem suas habilidades balísticas adquiridas em clubes de tiro.
O diferencial nesse caso era que se tratava de um jovem influencer com milhões de seguidores cuja morte ecoou profundamente nos círculos conservadores.
Mais tarde, vim a saber que o tal Kirk era um ferrenho defensor da liberação total das armas, tendo afirmado algo como “ter algumas mortes a mais é o preço que temos a pagar para mantermos o direito de andar armados”, ao que me levou a deduzir que foi vitimado por sua própria profecia. Talvez, num plano espiritual superior repensasse: “pisei na bola”.
Mas não era certo prejulgá-lo por uma frase infeliz. Não importa quem fosse, a notícia de seu assassinato me comoveu e particularmente me doeu saber que deixou mulher e filhos. É sempre lamentável constatar que um ‘homem de família’, uma pessoa ‘de bem’, tenha sido baleado ainda mais quando debatia com estudantes num ambiente universitário onde as ideias devem ser demovidas por outras ideias, nunca por projéteis.
Achando que a coisa ficaria por aí e viraria a ‘página Kirk’ de minhas preocupações, surpreendi-me ao ver nos dias seguintes pipocarem inúmeros vídeos e postagens de brasileiros lamentando a morte do rapaz e expressando ódio pelo responsável pelo tiro fatal, provavelmente um comunista radical ou um terrorista islâmico, algo que para sua decepção não se confirmou, já que o atirador era um americano branco de família tradicional.
Ainda assim, choveram na internet inúmeras manifestações de pesar com milhares de likes de consternação pelo tal Kirk que, de um momento para outro, passou a ser a versão reencarnada de Jesus na terra do far west. Montagens, obviamente falsas, atribuíram-lhe solidariedade de astros da música como Bob Dylan, Mick Jagger e até James Hetfield do Metallica que, num arroubo de benevolência, teria se proposto a financiar os estudos dos desamparados filhos do ativista. Uma animação apresentava-o cercado por uma aura angelical sendo recepcionado no céu por Cristo em pessoa com um abraço afetuoso.
Como é possível que justo eu que tenho o hábito de acompanhar notícias inclusive de jornais gringos, nunca tenha ouvido falar nesse sujeito tão carismático que mantinha relação de estreita amizade com o filho de Deus?
A morte de ‘São Kirk’ passou a ser o top da semana, encabeçando os assuntos mais comentados. Dona Filomena cuja única leitura em décadas foi a Bíblia de repente passou a bradar freneticamente nas redes sociais sobre mais esse crime da esquerda maligna que recaiu sobre um devoto cristão. O sr. Godofredo que só se informa por whatsapps e acredita que a covid foi uma conspiração globalista, de repente passou a discorrer com desenvoltura sobre a grandeza das pregações daquele homem beatificado (que até ontem nunca ouvira falar).
O assunto continuou rendendo e tanto nos EUA como por aqui jornalistas e até historiadores foram penalizados, perderam o emprego ou foram cancelados por ousar criticar aquele ser de luz inatacável, acima do bem e do mal, lançando uma nódoa sobre alguém tão imaculado.
Eu que antes cogitara engavetar o Kirk, percebi-me de repente envolvido no redemoinho dessa polêmica, vendo-me na contingência de procurar entender um pouco mais sobre esse fenômeno, capaz de despertar paixões desenfreadas.
Descobri por sua biografia que o santificado Sr. Kirk não tinha um comportamento tão condizente assim com a ética cristã. Era ele supremacista, não apreciava negros, achando Martin Luther King um engodo e que os EUA estavam melhores quando eram um país ‘mais branco e homogêneo’. Não gostava de ninguém que não professasse o cristianismo medieval. As nações deveriam ser guiadas não por normas constitucionais, mas por preceitos bíblicos. Flertava com práticas autoritárias, incentivando perseguição política, intolerância religiosa e censura ideológica. Atacava jornalistas, intelectuais, artistas e professores. Desprezava gays e imigrantes. Julgava legítimo Israel, por ter direito bíblico à Palestina, praticar genocídio matando de fome milhares de crianças cujo único pecado fora nascer no lugar errado.
Depois de me inteirar sobre seu pensamento ‘in totum’, deixei de ter empatia pelo Sr. Kirk, o santo do pau oco, passando a considerar que o mundo não ficaria mais pobre com sua ausência. Nem por isso festejei sua morte. Preferiria que continuasse bem vivo para reavaliar suas ideias racistas e xenófobas. Talvez o contato mais profundo com outras linhas de pensamento permitisse-lhe desistir de doutrinar seus adversários, não apenas poupando-lhe a vida como aprimorando suas concepções sobre a humanidade. E fizesse-o tomar consciência de quão babaca ele era.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
SÃO KIRK
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Um comentário:
Agora, tomara que tenha morrido mesmo, porque as mais novas dizem que foi uma encenação (como a do trump e do Bolsonaro??). Famoso o Kirk ficou.
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