A comoção nacional causada pela morte
de Sílvio Santos demonstra quão querido era o apresentador. Até mesmo a arquirrival
Globo abriu espaço nobre em sua programação para exaltar a perda. Esse
sentimento quase que unânime que tomou conta da nação diz muito menos sobre o adorado
animador de auditório do que sobre aqueles que o adoravam.
O tipo de homem admirado pelo
brasileiro é aquele que tem capacidade de proporcionar-lhe momentos de alegria
e fazê-lo sorrir para esquecer suas agruras, em sintonia com o refrão “da vida
não se leva nada, vamos sorrir e cantar”. Já reza a máxima que o bom brasileiro
é aquele que “perde o amigo, mas não perde a piada”. Isso elucida a índole fanfarrona
desse povo eternamente brincalhão e risonho. Valores como amizade e
solidariedade importam-lhe menos do que uma bela gargalhada.
O brasileiro, tão reticente em
protestar contra iniquidades, torna-se pleno ao rir desbragadamente, inclusive da
desgraça alheia. Não é à toa que no programa SS, as ‘pegadinhas’ faziam tanto
sucesso. Esse quadro consistia em, através de uma câmera escondida, flagrar um
cidadão incauto caminhando pacificamente pelas ruas, sendo-lhe armada uma situação
vexatória. Com o argumento de que tudo não passava de uma brincadeira para não se
levar a sério, todos podiam, sem culpa, zombar da vítima ridicularizada feita
de idiota, sob risos da plateia e do apresentador.
E ninguém tinha mais motivos para rir
do que Sílvio que, com quadros deploráveis como esse e outras atrações de
baixíssima qualidade, construiu um invejável patrimônio. Guiado pelo bordão “topa
tudo por dinheiro”, o apresentador vendia para o crédulo povão a ilusão da
riqueza fácil com carnês do Baú e bilhetes da Tele Sena, o que fez dele um dos
homens mais abastados do país.
Mas isso não apenas não incomodava
seus humildes fãs, devotos e contribuintes como era motivo de admiração. Pela
lógica da ‘meritocracia’ neles incutida, encher-se de grana (ainda que deles
subtraída) é bastante louvável pois decorre exclusivamente de merecimento, com
a bênção de Deus
O brasileiro adora quem se dá bem na
vida, seja jogadores de futebol, pastores evangélicos, duplas sertanejas,
influencers digitais ou apresentadores de TV. Os grandes ídolos nacionais são
invariavelmente pessoas com enormes posses e cultura nenhuma. O altruísta, o
idealista, o ambientalista, o que clama por justiça, o que se empenha em
abnegadamente lutar pelos despossuídos, o que se dedica a melhorar o mundo e
proporcionar condições dignas a todos, esse é ignorado e até criticado, tachado
de trouxa, canalha, petralha ou coisa que o valha.
O brasileiro mais simples não enaltece
sofredores iguais a ele, mas seu oposto, aqueles a cuja condição social jamais
equiparará. Freud explica. Ou melhor ainda o ‘filósofo’ Joãozinho Trinta que dizia:
“povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”.
Pela mesma razão, o brasileiro também
não elege políticos íntegros e combativos. A maioria dos parlamentares colocados
lá pelo voto dos mais simplórios, é de gente abonada com idoneidade duvidosa. A
corrupção é vista como benesse, pois o sujeito espertalhão é o malandro que ‘gosta
de levar vantagem’, outro atributo arrolado em seu rol de ‘virtudes’.
Talvez haja objeção em vincular Sílvio
a tal patifaria. Afinal, ele era tido
como um empreendedor honesto e batalhador que fez jus à fortuna que amealhou.
Um sujeito que começou como camelô e através de sua luta incansável conseguiu ascender
na vida.
Ao que parece, todavia, o Sr.
Abravanel não tinha gratidão para com aqueles que o ajudaram a subir na escala
social, tanto que não costumava fazer filantropia nem oferecer doações (por
mínimas que fossem) de parte de seus colossais ganhos. Nem mesmo do terreno
micado que possuía no Bixiga, em São Paulo, parcela ínfima de seus bens, aceitou
abrir mão para dar espaço a um parque público em benefício da cidade que o
acolheu e que lhe possibilitou tornar-se bilionário. Sua atitude mais
benemérita consistia em jogar dinheiro vivo para a plateia como se dá comida
aos porcos.
Sabia ele que a massa que o admirava
era constituída por gente de baixa instrução. Não fazia questão alguma de oferecer
cultura a suas companheiras de auditório. Tinha consciência de que pessoas com melhor
formação deixariam de reverenciá-lo, buscariam opções com maior nível de
exigência. Nas tardes de domingo tampouco se preocupava em trazer artistas de
qualidade, apenas a escória cultural.
Sua rede de TV, também não primava
por atitudes em prol da comunidade. O SBT pouco investia em ações educacionais
e importava execráveis programas mexicanos para entreter seu público. Desprezava,
além disso, o jornalismo investigativo e questionador. Quando a aguerrida
jornalista Sheherazade resolveu protestar contra os desmandos do governo de
plantão levou uma bronca do patrão e foi desligada da emissora. O homem do Baú
fazia questão de estar bem com os donos do poder, de Lula a Bolsonaro, passando
pelos militares da ditadura de quem foi um contumaz bajulador.
Apesar de quase canonizado, Sílvio, de
Santo não tinha nada. No máximo um comunicador competente e um próspero empresário
que soube como tirar proveito próprio das desgraças do país.
2 comentários:
Enfim, um olhar inteligente sobre a "cultura de massa", promovida pela sagacidade de quem 'sacou' o lado cinzento da tal "cultura brasileira" praticada pelos meios de comunicação. Quem melhor definiu a essência que move o brasileiro, foi aquele jogador de futebol, que a propósito da publicidade de um cigarro maior que os demais, anunciava sua preferência por ele, de modo acintoso, com palavras que se tornaram um refrão definidor do perfil do homem brasileiro, ou melhor da 'esperteza' do brasileiro: "gosto de levar vantagem em tudo, certo?"
O lado dramático dessa esperteza, é que passamos a cultivar esse bordão, com mais seriedade do que merece, tornando-o um traço marcante dessa "cultura"...
Perfeito . Achei que só eu não estava achando graças em tantas homenagens . Meu marido , pesquisador e prof titular de Medicina aposentado da Usp comentou : quando morre um cientista ninguém comenta ….
É triste valorizarmos apenas os que se dão bem , mesmo que a ética passe longe .
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